"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O lastro da memória, lastro das palavras

«Nós em termos culturais e civilizacionais explicamo-nos por uma acumulação de memórias, tradições, práticas, muitas vezes milenares. Muitas vezes, recuperar essa memória é um acto perfeitamente involuntário. Surge. Surge no próprio interior das palavras. Nós pegamos n'Os Lusíadas e vemos Camões, no ponto central do poema, ir fazer uma evocação dos episódios da Odisseia. Os Lusíadas são de 1572, portanto isso passa-se uns 2300 anos depois da Odisseia. Isso quer dizer alguma coisa. Nós temos uma memória cultural que está intrínseca nas próprias palavras, além de estar nas obras com que contactamos. E isso vem à tona, e não vem propositadamente. Vem porque faz parte das nossas necessidades de expressão. Isso acontece-me muitas vezes, mas não só com a literatura, acontece-me com a pintura, a música, o cinema. Há um adensar quer da preocupação cultural quer da expressão daquilo a que podemos chamar os grandes problemas da condição humana, quer da simples tradição transgeracional de informação e de factos que acaba por confluir na escrita. Nem nós nos podemos explicar sem isso.
Um dos grandes problemas da jovem literatura, e eu faço parte de vários júris literários e portanto posso falar com algum conhecimento de causa, é que a maior parte dos autores que concorrem não leram nada do Saramago para trás, se é que leram Saramago. Desconhecem completamente o património que está ao serviço deles e que poderia explicá-los. E isso vai ser uma tragédia.»
Vasco Graça Moura, entrevista à Ler, Janeiro de 2014

Falta lastro a quem nos representa.
A tragédia já começou.


P.S. - Por lapso, na 1.ª transcrição do texto, saltei a parte sublinhada, o que adulterava o sentido do mesmo. Convém repor a verdade.


2 comentários:

  1. Interessante pensar que memórias ficarão de nós dentro de 2300 anos?! com tanta tecnologia, virtual ou não, haverá ainda palavras? será que haverá ainda actos involuntários para recuperar memórias, ou serão administradas consoante a vontade de outros? A literatura, a pintura, a música, ou cinema, ainda representarão alguma memória cultural?
    ou será até proibido ter memórias?

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  2. Em que suporte restará a memória? Restará a memória?

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