"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Os retratos

«A minha amiga Teresa , hoje professora reformada, no principio da sua carreira foi mandada para uma aldeia lá para trás do sol posto. A escola não tinha condições nenhumas, e todos os meses, com a sua melhor caligrafia (onde é que ainda vinham os computadores...) a Teresa mandava uma carta ao ministério da Educação a explicar que não havia nada na escola, nem um mapa, nem os sólidos geométricos, nem uma caixa de pesos, nem giz - e como podia ela ensinar assim as crianças? E para ver se os comovia, acrescentava sempre que a escola - imagine-se! - nem sequer tinha os retratos do Senhor Presidente do Conselho nem do Senhor Presidente da República para pendurar na parede!

Todos os meses lá seguia uma carta, mas do Ministério nem palavra,o silêncio mais absoluto. Meses a fio. Nem sei quanto ela terá gasto em selos. Até que uma manhã, ia ela a chegar, quando vê a Sra. Palmira, empregada da escola, a correr para ela, felicíssima, de braços abertos :"chegou a encomenda, professora, finalmente o ministério mandou as coisas!" Correu para ela, quis saber mais coisas, se tinham deixado algum recado - mas a Sra.Palmira disse que não, tinham descarregado os caixotes e tinham-se ido logo embora, ela até tinha perguntado se não era preciso assinar nenhum papel, mas eles que não, que tinham de voltar depressa porque em Lisboa havia grandes complicações, ainda ninguém percebia bem o que se estava a passar, mas andava tropa pelas ruas, a rádio até já tinha dito para toda a gente ficar em casa, aquilo era mesmo uma grande confusão. A Sra. Palmira até ria: "ó professora,olhe que eu até percebi "revolução"!! A Teresa riu também, "ó Sra Palmira, uma revolução em Lisboa?" E riram muito as duas, enquanto começaram a abrir os caixotes para retirarem o material tão desejado. 

Só que, de todo o material pedido, o Ministério tinha apenas mandado os retratos do Senhor Presidente do Conselho e do Senhor Presidente da República....Que, evidentemente, nunca chegaram a ser pendurados.»
Alice Vieira



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