"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Foz literária

A Foz é literária.
Ou foi.

António Nobre passeava na Foz, onde veio a morrer de tuberculose em casa do irmão. Os bons ares não foram suficientes para o salvar.

Dizem que Eça de Queirós também gostava de lá passear.

O seu amigo Ramalho Ortigão "ainda menino, ia à Foz, à tarde, de chapéu de palha e bibe, apanhar conchinhas na costa." 
Já mais velho, convivia no Chalé Suisso (à época Chalet de António Carneiro) com Camilo Castelo Branco, Arnaldo Gama e Alberto Pimentel, entre outros.
A Foz é a primeira a ser tratada nas suas Praias.

O Chalé Suisso na actualidade

Camilo escreveu Cenas da Foz (que só encontrei na net e ainda não li) e bailaria, na década de 1850, nos saraus do Castelo da Foz. Aí celebrou, com algum escândalo, o aniversário de Ana Plácido, em 1859 (27 de Setembro). Estando já detido na Cadeia da Relação do Porto, incriminado de adultério, obteve autorização para passear fora da prisão, por motivos de saúde, e estendia esses passeios à Foz.
Também aí se hospedaria, mais tarde, com a família.

Sobre Camilo escreveu Teixeira de Pascoaes (O Penitente): "Meu pai conheceu-o no Porto (...). E eu mesmo, talvez houvesse olhado para ele, na Foz do Douro ou na Póvoa, em qualquer Verão da minha infância..."
Na Foz, Pascoaes terá ficado perturbado por um encontro casual que teve com uma "rapariga de cabelos loiros em anéis, a cercar-lhe a cabeça dourada", perseguindo depois, na realidade e na ficção, a figura dos seus sonhos e do seu amor.
No final da vida foi amigo de Eugénio de Andrade, que se mudara para o Porto. Os dois tomavam café na Confeitaria da Foz, onde ainda hoje se comem excelentes bolos (e não só) e se desfruta a presença próxima do mar.

Confeitaria da Foz (agora)
Eugénio de Andrade viria a instalar-se na Foz, em frente ao Jardim do Passeio Alegre, na década de 1990, no prédio que foi sede da Fundação com o seu nome. A luz e o olhar do rio estão na sua poesia.

O poeta homenageia Raul Brandão, nascido numa família de pescadores, na antiga Rua da Bela Vista, hoje rua com o seu nome, bem perto da Igreja de S. João da Foz.
Raul Brandão dedicou o seu livro Os Pescadores à memória do avô morto no mar. O primeiro texto deste livro é sobre a Foz do Douro.

Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão,
na casa do primeiro, em Amarante

À Foz ia José Gomes Ferreira nas suas férias. E este poeta também reverencia Raul Brandão, a quem chamou "o meu mestre secreto".

Faltarão outros (faltarão muitas mais coisas...), mas ainda vou buscar o insuspeito Mário Cláudio, portuense de um Porto mais barroco, da pedra do casco da cidade velha, mas que inicia a acção de Anel de Basalto na Igreja de S. João da Foz (barroca - tinha de ser!), quando um serafim de talha que sustentava o retábulo do altar das Santas Mães ganhou vida e anunciou coisas assombrosas a Maria dos Anjos de Sampaio Lobo Pitta e Themudo da Gama, uma santa senhora que rezava, sozinha, no silêncio do templo. A história começa delirante...
Santas Mães
(Igreja de S. João da Foz)
Mas da Foz literária passo a citar os próprios:
«Esta vila adormecida estava a cem léguas do Porto e da vida. Ali moravam alguns pescadores e marítimos, (...). As casas, limpas como o convés de um navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras.»
«O mar embala o Cabedelo. Uma luz como não há outra e que estremece com o movimento e os reflexos da água, um ar como não há outro e que ainda hoje respiro como a própria vida! Silêncio... a Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano, crestada pelo ar da barra, camada de sol, camada de salitre...» 
Raul Brandão, Os Pescadores

Foz, em frente ao Cabedelo

«(...) namoro com o Cabedelo há muitos anos. É uma língua de areia, acariciada pelas ondas. O ar já não será como no tempo de Raul Brandão, mas a luz ainda "estremece com o movimento e os reflexos da água".
(...) E vou esquecer (...) os pescadores do paredão, cuja arte de paciência me lembra os miniaturistas persas, sonhando com fanecas ou enguias ou robalos; vou esquecer-me disso, porque o bonito é o repuxo, sobretudo quando o sol se mistura com as suas águas, e tudo é poeira doirada, como o Cabedelo, que volto a contemplar. Esta é a luz que gostaria de levar nos olhos quando morrer - a luz do mar da Foz, atravessada por duas ou três gaivotas.»
Eugénio de Andrade, À Sombra da Memória


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