"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

quinta-feira, 16 de abril de 2020

A lentidão

Lembrei-me do texto de Tolentino de Mendonça por via da memória deste livro de Luís Sepúlveda.
«Com razão, num magnífico texto intitulado "A lentidão", Milan Kundera escreve: "Quan­do as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo." E explica, em seguida, que o grau de lenti­dão é directamente proporcional à intensi­dade da memória, enquanto o grau de velocidade é directamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipo­tência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento. Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chega­mos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver.

Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisa­mente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecâ­nicas, dos gestos cegamente compulsi­vos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro­-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a acelera­ção, riam-se, ganhavam tempo e distan­ciamento crítico, buscavam outros mo­dos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e oci­dentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lenti­dão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcio­nal e utilitário; escolhe mais vezes convi­ver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.»

José Tolentino Mendonça


Parte deste texto encontra-se na coluna lateral deste blog.
Mas é bom lembrar o que é importante...


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