"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

As marradas ideológicas à disciplina de Cidadania

Anunciou Luís Montenegro (LM), no Congresso do PSD, que uma das próximas prioridades do seu Governo é libertar "das amarras a projectos ideológicos e de facção" a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.

Feliz o país cujo maior problema na área da educação seja o conteúdo curricular de uma disciplina cuja carga horária é de uma hora semanal do 5.º ao 9.º ano do Ensino Básico, para além de abordagens temáticas feitas no 1.º ciclo. 

LM quer essa disciplina sem "amarras ideológicas". LM quer uma Cidadania neutra - asséptica, de natureza incolor, inodora e insípida. 

Porque LM é asséptico, incolor, inodoro e insípido.

E umas largas dezenas/centenas (?) de "borregos" exultaram, bateram palmas - das mais expressivas no Congresso - não que façam ideia dos temas abordados na disciplina de Cidadania e dos seus possíveis desenvolvimentos, mas, certamente, porque estão de acordo que o exercício da Cidadania e a sua aprendizagem é neutra, é asséptica, incolor, inodora e insípida - sem marcas ideológicas.

A ideologia é que é o diacho!...

E em que se deve basear a "nova" disciplina de Cidadania? Na Constituição da República - o objectivo é "reforçar o cultivo dos valores constitucionais".

Será que, a seu ver, a Constituição não tem amarras ideológicas? É neutra? Uma Constituição asséptica, incolor, inodora e insípida? A actual Constituição é igual à do Estado Novo? Não exprime valores e princípios, uma visão da sociedade e uma formulação do Estado que se pretende construído e a construir? 

Quando, no preâmbulo de 76, A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno, não há marcas ideológicas?

A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), sustenta que a disciplina “integra um conjunto de direitos e deveres que devem estar presentes na formação cidadã das crianças e dos jovens portugueses”. Objectivo? Que sejam, no futuro, “adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos direitos humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática”.

A concepção da disciplina de Cidadania tem na sua base a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Sobre os Direitos da Criança e os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, e... a Constituição da República. 

São estes documentos que consubstanciam projetos ideológicos de facção? Quais serão, em alternativa, aqueles que se oferecem para base da revisão da disciplina?

Como bem diz Filinto Lima, o representante dos directores escolares, em frase reproduzida no título de um artigo do Público, “A disciplina de Cidadania não é um problema das escolas. É um problema dos políticos”.

As prioridades apresentadas por LM no Congresso pretendem, em parte, "secar" algumas propostas do Chega, entre elas o "corte das amarras ideológicas" da disciplina de Cidadania. Nessa estratégia, as orientações de Cidadania "vão com os porcos". Poucas pessoas as conhecerão, mas a ignorância não impede que se aplauda a apregoada limpeza ideológica - se é ideologia cheira a "esquerdame" perigoso! A direita está livre dessas sombras: é ideologicamente asseada - asséptica, de natureza incolor, inodora e insípida. 

Os que propõem e aplaudem nem reflectirão sobre a impossibilidade da neutralidade dos princípios e dos valores no exercício da Cidadania.

Repito: a Cidadania não pode ser asséptica, incolor, inodora e insípida, sem marcas ideológicas. Os valores e os princípios da Cidadania como o Chega os defende, não são os de uma sociedade livre e democrática, respeitadora dos Direitos Humanos. Não são os meus valores e não são os que estão definidos na nossa lei fundamental. 

Se Montenegro quiser, de facto, que a disciplina assente na Constituição, não quebrará amarras nenhumas, porque não terá de alterar nada de significativo. 

Aos valores e princípios da Constituição República sinto-me completamente amarrado. 

Quem não está... que vá amarrar para outro lado!...


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