«(...) houve as eleições com os resultados que sabes. Em resumo, o PC perdeu perto de 3/4 dos deputados e cerca de meio milhão de votantes. A Féderation perdeu mais de metade dos deputados. Os gaulistas ortodoxos têm a maioria absoluta. Seguem-se-lhe em número de deputados os giscardianos (que estão à direita dos gaullistas, e não ao centro como dizem), o PC, a Federação e os Centristas. Há um número considerável de gaulistas de esquerda.
Esperava-se a vitória dos gaulistas, mas o recuo do PC foi para mim uma surpresa. O mais curioso é que o PC perdeu uma parte do seu eleitorado nos seus bastiões tradicionais, como a chamada "ceinture rouge" de Paris. Houve muitos operários que votaram gaulista. Isto confirma que a classe operária está em grande parte integrada no sistema, fazendo bicha para a sua vez na chamada "sociedade de consumo". O operários que tiveram a iniciativa da greve foram uma minoria muito esclarecida, pertencente, na maior parte, à metalurgia. O operariado vota no PC institucionalmente, mas considera o PC como um elemento da ordem e não da revolução. Num momento em que a ordem parecia ameaçada, as classes médias e uma parte do operariado consideraram que como baluarte da ordem o De Gaulle era preferível ao ao Waldeck Rochet. E à luz destas considerações percebe-se muito bem porque é que o PC condenou tão ostensivamente os "revolucionários" e centrou a sua campanha eleitoral à volta do tema de que é um partido ordeiro e inimigo de aventuras, com o "sens de l'État".
Foi um duche escocês. Na 1.ª fase pareceu que toda a gente em França queria a revolução; na 2.ª fase que toda a gente queria o status quo. Na realidade a revolução foi obra de uma minoria actuante, que durante mais de um mês penalizou a maioria. Só as minorias fazem as revoluções.
Tenho várias ideias anotadas sobre todo este problema num diário que escrevi e que te hei-de mostrar.*
(...)
O que vai seguir-se? (...) O De Gaulle vai acabar mal, evidentemente, porque terá contra ele a Esquerda e a Direita. A não ser que, mais uma vez, a audácia o recompense. De qualquer forma uma viragem está em curso em França, e, através dela, em toda a Europa ocidental. O socialismo, ou qualquer coisa com outro nome e mais desalienante do que o que o dito nome contém existencialmente, virá, mas por vias bem diferentes daquelas que ensinam os clássicos e os doutores. Viva a imaginação!»
Carta de António José Saraiva
António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência
* António José Saraiva, Maio e a Crise da Civilização Burguesa
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