"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

sábado, 23 de julho de 2016

A vida faz-se depressa...

«Pintura? Pintores? Os milhares de pessoas que, de segunda a quarta-feira, discutem no intervalo do trabalho a prova desportiva do domingo anterior e, de quarta-feira a sábado, a prova anunciada para o domingo seguinte; os milhares de pessoas que enchem os cafés e os estádios, que ficam em casa ou vão até à leitaria mais próxima para ouvirem o relato excitante que as emissoras transmitem, e às vezes repetem, pela voz dos locutores de que se conhece a altura, a cor dos olhos e a vida sentimental; os milhares de pessoas que procuram ansiosamente o primeiro cinema com lugares vagos para iludirem por duas ou três horas os amargos da vida ou o tédio mortal do tempo vazio, não sabem da existência de artistas nem dão pela sua falta. A vida faz-se depressa, as horas de ócio são poucas, a distracção é uma primeira necessidade. Há a praia no verão, o cinema, os parques de cavalinhos, as revistas condensadas, o futebol, novamente o cinema, novamente o futebol.»
Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo (1956)

E quando Mário Dionísio escrevia esta obra, que quereria antes que fosse "uma longa conversa", não havia sequer televisão.
Mudando as formas de ocupação dos tempos livres e de ilusão dos "amargos de vida ou o tédio mortal do tempo vazio", conhecesse Mário Dionísio os novos (ou a renovação dos velhos) meios de alienação - o futebol mantém-se, e a um nível elevado, mesmo sem os relatos ouvidos na leitaria mais próxima - e a essência do que escreveu manter-se-ia.
Venham as sanções...



Sem comentários:

Enviar um comentário