"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

domingo, 5 de maio de 2019

Oportunidade política


«(...) Costa aproveitou a oportunidade. Precisava de criar o ambiente político para a campanha que tem na cabeça. Ele quer o melhor de dois mundos. Depois de ter as vantagens do apoio da esquerda, quer as vantagens de não o ter. Depois de uma maioria sem maioria, quer recuperar o voto útil que morreu quando mostrou que era possível governar com os votos do BE e do PCP sem ficar em primeiro. Um bom final de mandato da "geringonça" impedia a dramatização. Com o cenário montado, era preciso fazer esquecer a lealdade por vezes dolorosa com que os "irresponsáveis" do Bloco e do PCP aprovaram quatro orçamentos que foram além das exigências europeias. (...) 

(...) Como há limites para o contorcionismo, António Costa sabia que BE e PCP não podiam mudar a sua posição de sempre quanto à reposição da carreira dos professores. Tanto o sabia que aceitou, em dois orçamentos sucessivos, a norma que estipulava que apenas o tempo e o modo da reposição dependeriam da disponibilidade orçamental. Saiu-lhe a sorte grande com a cambalhota da direita, que Rio e Cristas vão pagar cara. E veio o terceiro ato: a ameaça de demissão que, a poucos meses das eleições, é apenas um ato de campanha eleitoral. E com ela, uma aldrabice descarada: que a decisão do Parlamento significa um aumento de 800 milhões, incomportável para o Governo. (...) O que mudou foi a oportunidade de Costa arrancar com a sua campanha eleitoral.

Apesar de BE e PCP o terem deixado governar quase sem sobressaltos estes quatro anos, o velho PS quer rédea solta. Só que António Costa não vai ter maioria absoluta. Vai governar com quem depois deste truque de última hora a pensar, como é seu hábito, apenas nos próximos meses? Esta é a pergunta dramática que nos vai fazer na campanha para nos sacar o voto. (...)

Foi a "geringonça" que salvou o PS do destino dos restantes partidos socialistas europeus. Terá de ser uma nova geração de políticos a impedir que o calculismo continue a deitar tudo a perder. Ao apostar todas as fichas num fim triste para a "geringonça", Costa semeia a desilusão e o desalento nos que apoiaram esta solução política.
Mesmo que consiga vitórias circunstanciais, a derrota é brutal. E é por isso que, esta semana, António Costa se juntou à tralha do passado.»

Daniel Oliveira, Expresso, 4 de Maio de 2019


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