"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Na cozinha da Morgadinha

Preparando a ceia de Natal...

«A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Ocupava um vasto recinto rectangular, rasgado em amplas janelas e fornecido de bancas monumentais, condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda saudosa dos odoríferos vapores que outrora espalhavam os tachos e as grelhas monásticas.
Ia indizível animação, quando Henrique aí entrou com o pai de Madalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de sertãs, um borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar de cristais no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações, de conselhos, todos atinentes a negócios culinários. E D. Vitória ralhava, e a Sr.ª de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus desdenhava do serviço das colegas, e Madalena e Cristina riam de todos e de tudo, e Ângelo a todos impacientava.
Não se imagina!
A chegada do conselheiro e do seu hóspede veio exacerbar a desordem. Ergueram-se risos e exclamações, as quais ainda assim eram subjugadas pelos reparos e censuras de D. Vitória, a qual dizia para o conselheiro:
- Sempre o mano tem coisas! Olhem agora para o que lhe havia de dar! Vão lá para dentro, vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que estamos. E o primo Henrique também! Ora esta!...
- Não se aflija, mana. Nós não podíamos resignar-nos a ficar alheios à tarefa principal do dia. E até porque é necessário dar andamento a isto para chegarmos a tempo da missa do galo.
(...)
- Vamos lá Sr. Henrique - tornou o conselheiro - aceite-me alguns preceitos de prática. A regra é fazer tudo o mais indigesto possível; porque essa qualidade é o característico dos manjares desta noite.»


Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais


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