«(...) uma tarde, já não sei quando, ou talvez ao fim da manhã, ao entrar para o eléctrico dos Olivais, senti um baque, vi aquele rosto como nunca outro assim, não era feio e era quase bonito, estava antes da fealdade e da beleza, era um rosto do homem antes do homem, não podia ser senão ele, ninguém me disse, mas eu olhei e soube que só podia ser ele, Miguel Torga. A menos que fosse a reincarnação de Viriato. E soube mais: soube que ele só podia ser assim, aquele rosto, aquele olhar de águia das montanhas, aquele porte de camponês e príncipe. Soube que ele só podia ser assim e só podia ter aquele nome. (...) Não creio que tenha sido por homenagem a Cervantes e Unamuno, nem sequer pela flor do monte, mas sim pelas vogais e consoantes. Há nomes que estão certos sem se saber porquê e este nome está certo. Veja-se o e de Miguel e o o de Torga, vogais abertas, mas, sobretudo, nem percebo porque nunca ninguém deu por isso, veja-se o g de Miguel e o g de Torga. Esse é o segredo, vogais, consoantes, sonoridades, correspondências, mistérios. Seja como for, ele só podia ter aquele nome e este nome. É por isso que não sei quem é Adolfo Rocha. Acho que Miguel Torga é só isso, Miguel Torga, ele próprio, o outro, no exacto sentido em que Rimbaud definiu o poeta moderno: "je est un autre". Ou talvez seja mais complicado, talvez ele tenha acabado por fazer o contrário: um outro é eu.
O garoto trangalhadanças que de fralda de fora vai à escola aprender a gramática e a tabuada nunca se chamou Adolfo. Mesmo sem o saber ele já era Miguel e só nasceu verdadeiramente quando o autor o pôs em Agarez, que é S. Martinho erigido em local mítico, o tal "local sem paredes", onde a escrita e a vida se fundem em realidade e símbolo para ganhar uma dimensão universal.»
Manuel Alegre
Miguel Torga nasceu a 12 de Agosto de 1907, em S. Martinho de Anta.
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