«Uma estátua é uma homenagem quando é erigida e inaugurada. Depois é um vestígio, uma peça do património histórico, um objecto identificado ou não, uma obra de arte ou não. Quem não consegue actuar no presente volta-se para os fantasmas do passado. Um problema efectivamente actual é a incapacidade ou impossibilidade (segundo Rosalind Krauss e discípulos) dos artistas contemporâneos conceberem monumentos e estátuas. (Para que servem hoje os escultores?)»
Alexandre Pomar
«Os fenómenos de que tenho intenção de tratar nestas breves páginas dizem respeito predominantemente àquela curiosa constante - deveríamos antes chamar-lhe "inconstante", psicológica-estética - que habitualmente designamos por "gosto", e que se apresentam muitíssimo mutáveis, instáveis, impossíveis de determinar com exactidão, sujeitos a melindres, preferências, humores individuais, e já por si mesmos abarrotados de equívocos e de incertezas.»
Gillo Dorfles, Oscilações do gosto
A petição assinada para retirar a estátua de Camilo do Largo Amor de Perdição, pede o "favor higiénico de mandar desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça". Lembraram-se 11 anos depois?
A primeira notícia do Público identificou alguns dos "ilustres" que assinaram a petição: da política encontram-se os conservadores de direita (António Lobo Xavier) e os de esquerda (Ilda Figueiredo e Honório Novo); encontramos o conhecido jurista e ex-banqueiro Artur Santos Silva, que presidiu ao "Porto 2001 Capital da Cultura"; e artistas plásticos (cujo nome desconheço); juntam-se Mário Cláudio, de cujos livros sou largamente consumidor, e Bernardo Pinto de Almeida, que leio na sua qualidade de historiador de arte.
Descobrem-se, sobretudo, duas ordens de razões para essa solicitação: uma estética, outra moral - gostos (que se podem discutir) e juízos que, a partir do sentido de cada indivíduo, estabelecem a existência (ou não) de princípios éticos/morais (tão difíceis de determinar numa obra de arte e no que ela tem de criação pessoal, de subjectivo)... que também se podem discutir, mas em que, tal como os gostos, cada um tem os seus (princípios e julgamentos).
Não me parece que o problema dos peticionários que se pronunciaram seja o nu em si - é o nu em relação/oposição ao vestido. Queriam um Camilo em bom e... saiu um "exemplar mais ou menos pornográfico" (expressão de Rui Moreira). Não sabemos o que pensam os que não se pronunciaram publicamente.
Mário Cláudio considera que a estátua "Reduz o amor de Camilo e de Ana (...) a um par grotesco, a uma ilustração de bordel." O seu pensamento é mais rebuscado e, mais do que o factor estético ("a escultura muito feia"), ajuíza o que entende ser um desrespeito para com uma mulher "notável, talentosa, corajosíssima", "feminista avant la lettre". A desnudez (apenas) da figura feminina diminui Ana Plácido, é a objectificação da mulher. Parece-me um juízo demasiado peremptório face à subjectividade da obra de arte (e o escultor Fernando Simões sempre afirmou que a figura feminina representa, simbolicamente, as várias mulheres que Camilo amou e não, expressamente, Ana Plácido).
Ilda Figueiredo defende que haja igualdade: "Ou os dois nus, ou os dois vestidos." Está de acordo com os princípios ideológicos da peticionária, mas não respeita a liberdade criativa.
Para Bernardo Pinto de Almeida, a obra é medíocre: "Temos poucas figuras grandiosas como o Camilo e o que fazemos para o homenagear? Uma escultura muito má, presa ao passado, que não mostra um Camilo para o nosso tempo." O problema maior é não honrar devidamente o escritor e ser um dos exemplos da má qualidade da arte pública. "(...) em Portugal a pouca importância que se dá à arte que se coloca no espaço público é reflexo da pouca importância que se dá à cultura em geral."
Pode-se concordar, mas quem define o que se deve expor ou não? O crítico quer uma obra mais moderna, mais de acordo com o nosso tempo, mas mais ocasiões houve em que se criticou a modernice de algumas obras, reflexo da incompreensão ou da não aceitação do novo. No Porto, em 1916, terão escarrado numa obra de Amadeo (ou foi só metaforicamente?) e o pintor foi, inclusive, vítima de agressão. Acusava a crítica que "Está o pintor como certos políticos... Também não há ninguém que os perceba." Estamos entre os temporãos e os serôdios.
Polémicas com arte pública sempre aconteceram.
Houve, por exemplo, as polémicas com a estátua de D. Sebastião, de Cutileiro, em Lagos (1972):
Em tempos de Estado Novo, quando os reis eram gente sisuda, nasceu um D. Sebastião menino |
Escreveu António Arroio, em 1919, que a estátua era apedrejada, sofrendo estragos |
E "são várias as homenagens ao Zeca Afonso, há muito tempo uma vítima..." (AP), em Penamacor e Malpica.
"Recorrendo ao VAR", o Presidente da Câmara do Porto lá descobriu que, afinal, a doação da estátua pelo escultor foi aceite pelo executivo camarário, assim como a proposta da sua localização.
Camilo resistirá! É homem calejado com toda a sorte de desventuras na sua vida. Bem que Pascoaes lhe chamou "O Penitente"!
A estátua que originou toda esta história até está remetida para um canto discreto do largo. Se não me desperta especial apreço (só o escritor representado), também não me causa repulsa e, tendo sido doada pelo autor, a cavalo dado... não se remove o dente.
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