"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

domingo, 22 de outubro de 2017

A propósito de reformas florestais, incêndios, ataques políticos...

... tudo em literatura!

«Meteu a passo, primeiro, depois onde o caminho era recto e areado a galope. À desbanda de Urrô, dentro do Perímetro, entrou por um atalho e suspendeu-se numa clareira. Apeou-se e prendeu a égua. Ajuntou mato, carquejas, ramos secos, que havia por um lado e outro em pleno bastio. Acendeu um fósforo, viu as primeiras flamechas, voltou a cavalgar, e toca rumo ao Norte. Repetiu a cena em Azenha. Tomou em seguida o caminho da floresta e, inflectindo a Rebolide, acendeu nova fogueira. Depois, por ali fora, pôs-se a contornar o Perímetro. Em Valadim das Cabras, olhando dum alto, lobrigou na noite o clarão dos incêndios. Exultou. A atmosfera enrubescia. (...) Cavalgou de novo e repetiu a façanha sucessivamente em Ponte do Junco e Favais Queimados. Nas vizinhanças de Almofaça apercebeu-se de um alarido crescente, em catadupa. Eram os socorros que partiam exaustinados, sem objectivo certo, para Cheleira do Negro e Fusos do Bispo. Esgueirou-se para dentro do pinhal, lá longe, onde a égua punha um vulto confuso ou se desvanecia nas sombras da noite. Assim que passaram, voltaram à sua rota.
Seriam quatro horas da manhã e o setestrelo já virara no céu. Faltava-lhe Bonfim das Pegas e torceu para lá de rédea solta por uma ensarilhada de caminhos que tivera de estudar e conhecia como as palmas das mãos. Arrebanhou como das outras vezes carqueja, giestas secas, caruma e sargaços, e acendeu o morouço de mato a meio do bastio. Quando viu os pinheirinhos a estoirar e arder como archotes, toca mais adiante!
Nas vizinhanças de Portela do Beltrão, a três quilómetros de Arcabuzais, a selva crescera tanto que lhe dava muito por cima da cabeça. O tojo era alto e ressequira no pé. E nem se deu ao cuidade de amontoar a lenha. Pegou o fogo a uma tojeira e dali a pouco a chama difusa corria a toda a frente, alterosa ou baixa, tocada pelo vento. (...)
Fechou-se em casa magicando, inundado de mais regozijo e tumulto que um bando de pássaros ao respigo de uma cerejeira. Quantas léguas percorrera naquelas seis horas? Umas vezes a trote, outras a galope, devia ter cursado adentro do Perímetro um dédalo de veredas que somaria mais de trinta quilómetros. A horas de sair dos gados, depois de comer e beber do surrão, foi ter com o rendeiro da sua horta. Regateou com ele, ajustou, beberam o alvaroque. Chegou um passageiro que falou do incêndio que lavrava de lés a lés da floresta. Se lhe não acudissem, era a ruína total duma obra custosa de alguns anos e muito dinheiro. Mas os Serviços abstiveram-se de pedir socorro às aldeias, supondo-as conjuradas na malfeitoria. Apelaram, sim, para quantos bombeiros havia em vilas e cidades, desde a Guarda a Vila Real. À noitinha, a serra dos Milhafres era um pavoroso mar de chamas. O calor sufocava. Já os primeiros rescaldos, empestando a atmosfera, exalavam um hausto envenenado, que era molesto respirar.»
Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam

Arborização de baldios (sem data)
Imagem de Floresta Portuguesa - imagens de tempos idos,
da colecção Árvores e Florestas de Portugal (Público)

Neste romance de Aquilino Ribeiro, acabado de escrever em 1958, os beirões, perante o Plano de Povoamento Florestal da ditadura do Estado Novo (iniciado em finais da década de 1930), fazem a defesa dos terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados pela comunidade de forma a deles retirar parte vital do seu sustento e de que então seriam "expropriados".
A revolta popular acontece, mas a reacção policial também e as consequentes prisões.
O velho Teotónio vinga-se provocando os incêndios.
Trabalhos de arborização na serra do Marão (sem data)
Imagem da mesma fonte

O livro, "um romance panfletário, porque todo ele foi arquitectado para fazer um odioso ataque à actual situação política", foi censurado.

«É evidente que, se o original tivesse sido submetido a censura prévia, não seria autorizado, porque é, talvez, a obra de maior ataque político que ultimamente tenho lido.»

Relatório dos serviços de censura (Fevereiro de 1959)

Com base no relatório, não foi autorizada a reedição, não foram permitidas críticas na imprensa e foi dada ordem de apreensão dos exemplares que ainda existiriam.
A obra valeu um processo criminal a Aquilino Ribeiro, por "desacreditar as instituições vigentes".


2 comentários:

  1. penso que não foi preciso lerem o livro pelo que por ai se viu:(
    a tragédia está nas mentes obscuras da ganância

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Lembrei-me do livro por colocar a questão dos diferentes interesses perante a ocupação de um território: baldios vs. florestação.
      Também hoje, muitos e diferentes interesses interferem na floresta e em sentidos opostos. A par da inconsciência de outros (como as queimadas que vi, em pleno Verão, quando a poucos quilómetros se apagavam fogos).

      Eliminar