"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

domingo, 22 de novembro de 2015

Proximidades - as bandeiras francesas e o pé da Luisinha Carneiro

Várias pessoas, nas redes sociais (e falo do fb), acusam outras de hipocrisia, porque estas últimas coloriram a sua foto com as cores da bandeira francesa em sinal de solidariedade com os franceses, após os atentados do passado dia 13.
Para sustentar essa acusação, lembram os atentados noutros territórios, nomeadamente em vários pontos de África.
Pintar uma bandeira ou colocar uma foto de Paris ou outra imagem alusiva... vale o que vale. Para alguns pode servir de lenitivo. Outros participam, apenas, do momento.
Sentir o que acontece em Paris mais do que aquilo que acontece em África (Mali, Nigéria, Camarões...) parece-me natural. Em África, se for em alguma das nossas antigas colónias, certamente que a reacção será mais emotiva. Há uma proximidade geográfica e afectiva em relação a quem tem mais afinidades connosco, está mais perto, pertence ao "nosso mundo" nesse outro mundo mais vasto.
Quando li a tal acusação de hipocrisia por parte de um ex-aluno já crescidinho (e não foi feita a mim, que não "partilhei" aí o momento), lembrei-me de um texto de Eça de Queirós que eu costumava trabalhar nas turmas a quem leccionava Português.

O texto é este:
(pode estar com algumas adaptações em relação ao original)

Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz de um candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.
Espalhados pelos sofás e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.
Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. “Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas…”. As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, a Hungria, “um rio transbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…”. Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: “Que desgraça!”. A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas… Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas, exclamaram brandamente: “Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...”. De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesmo teve um oh de dorida surpresa. No sul de França, “junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortos, onze ferimentos…”. Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno… E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:
- Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
- Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista… esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e todos se debruçavam, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já o criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

Eça de Queirós, Cartas Familiares



2 comentários:

  1. parece que os homens têm continuado a ser cópias uns dos outros,
    e as situações repetem-se no tempo e no espaço

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  2. A História não se repete... mas quase. A mudança de mentalidades é um fenómeno lento, mais lento do que pode parecer à primeira vista.
    Não estamos assim tão longe do Eça...

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