A polícia política seguiu atentamente a sua vida e a sua obra, compondo um processo exemplar do que é a devassa da vida de uma pessoa.
Quando tomou conhecimento do seu processo, Miguel Torga escreveu:
«Um acervo de documentos ridículos e trágicos ao mesmo tempo. Os passos que dei durante quarenta anos seguidos hora a hora, reproduções de cartas particulares que escrevi e recebi, denúncias feitas por pessoas insuspeitadas, quanto ganhava e não ganhava no consultório, minúcias de que me esquecera, todo o meu passado coligido, vasculhado, devassado.
E tive pena de mim. Vista através daquele registo laborioso e tenaz de gusanos inexoráveis, a minha vida era a própria imagem da desolação. Descarnada de qualquer substância anímica, mais objectivamente exacta do que a biografia que porventura aflora à tona do que escrevi, parecia o relato de uma autópsia. Exsicado, via-me ali reduzido a um despojo arqueológico, como se todos os meus actos fossem equivalentes e tivesse passado por eles o sopro do nada.»
Diário XII, (Coimbra, 18 de Fevereiro de 1975)
Da sua passagem pelo Aljube (cerca de 3 meses) resultaram, literariamente, 5 poemas, o mais conhecido dos quais, Ariane, escrito no primeiro dia do ano de 1940, foi escolhido para o programa Um Poema por Semana, na RTP2.
Mas há uma tocante Pietà, do Natal de 1939, e a
Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.
Depois,
não sei porquê nem porque não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.
Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!
Miguel Torga,
Cadeia do Aljube, 6 de Dezembro de 1939
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