«Lisboa é uma cidade sem passado visível nas pedras. Ou melhor: o passado de Lisboa resume-se a esta luz que, de olhos em olhos, de pele em pele, de caliça em caliça, chega diariamente até nós, lá do fundo dos tempos, sempre com o mesmo peso de espuma voada.
Depois, ao anoitecer, dá-se uma
espécie de terramoto e a cidade afunda-se na escuridão. Desaba, desmantela-se,
rui (às vezes ajudada pelo clarão explosivo do luar), para surgir reconstruída
na manhã seguinte com a fluidez suspensa de pedras de céu azul e o habitual
ouro contente das fachadas.
Eis a razão, ou pelo menos uma das razões, por que os habitantes desta cidade não se inibem de deitar abaixo seja o que for (os Jerónimos e a Torre de Belém escaparam até hoje à demolição por milagre), todos, no fundo - repito -, com a convicção de que o nosso único testemunho de passado comum reside nesta bendita luminosidade que, através de mil catástrofes e tormentas, purifica incansavelmente as ruas e os prédios.»
José Gomes Ferreira, nascido a 9 de Junho de 1900, na cidade do Porto, teve épocas de vagabundagens por Lisboa, a "horas desertas da noite, quando o silêncio crepita mais vivo na solidão", de que "resultou o adensamento (...) da lenda que me atribui o conhecimento a palmos de Lisboa e respectivos alçapões".
Citações de José Gomes Ferreira, O irreal quotidiano
A imagem que conservo há anos "para abertura" do meu PC |
Considerava JGF como derrotista, mas Lisboa parece-me hoje uma cidade que vai perdendo a memória ao mesmo ritmo que vai sendo ocupada pelos alienígenas.
Fica-nos a luz...
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