"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

domingo, 17 de abril de 2022

Uma malhada para os padres

«O dia de Páscoa era uma malhada para os padres. Enchiam as queijeiras e chegavam a criar-lhes mofo nas arcas os pães-de-ló e os bolos de trigo folhado. Os ovos que ajuntavam enfartariam um convento de gulosas freiras com os seus capelães durante um trintário. (...)

O Sr. P.e Francisco abancou, mal despiu o roquete, e, sem dizer Santa Maria val, acometeu o prato da sopa a fumegar. Os ajudantes também não se fizeram rogados, afora o Joaquim Javardo, o somítego, que primeiro se abraçou à cântara da água.
- Não beba, que se lhe gerescem rãs na barriga! - chalaceou Glorinhas.
- Tem aqui pinga! - acudiu a senhora Ana com uma caneca cheia de verdasco, a esfuziar.
- Uma vez só não castiga! - respondeu, limpando a beiça às costas da mão.
Comeram-lhe à tripa forra carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho de sal, até fazia cócegas no céu da boca. Quem bem come bem bebe, acabaram a janta enfrascados e lerdos como patos na engorda.»

Aquilino Ribeiro, Terras do Demo


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