1.ª edição - 1944 Com desenhos de Leandro Gil (pseudónimo de Mário Dionísio) |
«Mas não havia só camponeses e operários. Havia a sociedade inteira: tudo dependia do "ponto de vista". Havia, nomeadamente, a pequena-burguesia a que todos pertencíamos, que conhecíamos de dentro e que tinha (teria), quanto a mim, um papel importante na situação política portuguesa. Não inventada, mas observada e pessoalmente vivida, a pequena-burguesia permitiria trazer a nossa ficção para a cidade. E foi o que fiz em quase todo O Dia Cinzento. Por isso terá sido tão mal compreendido quando apareceu. Mas a actividade clandestina lá está, e na cidade. Bastou o pequeno truque de dar nomes estrangeiros às personagens (na 1.ª edição), simulando, para a censura, tratar-se duma história da Resistência francesa. As pessoas, contudo, as ruas, os recintos descritos no "Nevoeiro na cidade" são de Lisboa. A casa da personagem principal é na Calçada dos Cavaleiros, o café é em frente da estação do Rossio. Aí os via, escrevendo.
Creio que O Dia Cinzento marca ainda outra viragem. E, se mo permitem, importante. Durante a ocupação da França pelas tropas de Hitler, faltaram-nos os livros e os jornais (franceses) que tinham sido até aí o nosso alimento diário. Não tive remédio senão puxar pelo meu pouco inglês, desenvolvê-lo o mais possível e isso me permitiu conhecer directamente as literaturas de língua inglesa (cheguei a traduzir A Pérola do Steinbeck) e descobrir a short story e a short short story (...). A essa descoberta devo, em grande parte, tecnicamente falando, O Dia Cinzento. E quem não tiver dado por isso nunca terá percebido nada do que se passou daí em diante no neo-realismo. Pelo menos, nos que chegavam: Cardoso Pires, por exemplo. Adeus ao descritivo-sentimentalismo de influência brasileira. Outras coisas viriam.»
Mário Dionísio, Autobiografia (1987)
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