"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Transição...

«É quase meia noite. Numa inquietação crescente, vou escrevinhando a consultar o relógio a cada momento. Quero assistir à passagem de ano. Faltam vinte minutos, faltam quinze, faltam dez... Um agiota não faria melhor se estivesse ao pulso de um agonizante de quem esperasse herdar uma grande fortuna. E acabo por me rir. Farto de saber que nada vai mudar, roído de desilusões, e teimo na estupidez das mais vezes! Simplesmente, não desisto. A razão argumenta, a experiência ensina, e nos recônditos do meu ser nenhuma lição de objectividade encontra eco. Orgulhosos da nossa ciência, e seguros de que dominamos a natureza, zombamos dos nossos avós e dos rituais com que tentavam exorcizar as forças do mal e propiciar a renovação do tempo. Mas, no fundo, continuamos supersticiosos e crédulos como eles. A abafar ruidosamente a emoção a tiros de petardo ou de champanhe, ouvimos bater as doze badaladas na secreta esperança de que elas sejam a meta remissa do passado e o ponto de partida dum futuro redentor. Assim persiste sob a máscara soberba do civilizado a humildade do primitivo. A humildade que o mantém vivo nas selvas da ignorância, ao lado do morto que vai sendo nas avenidas da sabedoria...»

Miguel Torga, Coimbra, 31 de Dezembro de 1969 (Diário XI)



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