«É quase meia noite. Numa inquietação crescente, vou
escrevinhando a consultar o relógio a cada momento. Quero assistir à passagem
de ano. Faltam vinte minutos, faltam quinze, faltam dez... Um agiota não faria
melhor se estivesse ao pulso de um agonizante de quem esperasse herdar uma
grande fortuna. E acabo por me rir. Farto de saber que nada vai mudar, roído de
desilusões, e teimo na estupidez das mais vezes! Simplesmente, não desisto. A
razão argumenta, a experiência ensina, e nos recônditos do meu ser nenhuma
lição de objectividade encontra eco. Orgulhosos da nossa ciência, e seguros de
que dominamos a natureza, zombamos dos nossos avós e dos rituais com que
tentavam exorcizar as forças do mal e propiciar a renovação do tempo. Mas, no
fundo, continuamos supersticiosos e crédulos como eles. A abafar ruidosamente a
emoção a tiros de petardo ou de champanhe, ouvimos bater as doze badaladas na
secreta esperança de que elas sejam a meta remissa do passado e o ponto de
partida dum futuro redentor. Assim persiste sob a máscara soberba do civilizado
a humildade do primitivo. A humildade que o mantém vivo nas selvas da
ignorância, ao lado do morto que vai sendo nas avenidas da sabedoria...»
"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)
quarta-feira, 1 de janeiro de 2025
Transição...
Miguel Torga, Coimbra,
31 de Dezembro de 1969 (Diário XI)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário