O génio da ironia na ficção sobre a guerra.
«Cornelius-Hippolite VandenBeurs consagra-se à organização, em países neutros, note-se bem, mormente na pacífica e laboriosa Schwíndia, de alguns trusts e holding companies através dos quais se procederá à exploração, troca e rateio dos produtos dispensáveis aos dois campos beligerantes: essas empresas, rigorosamente neutrais, é bom acentuarmos, controlavam ao mesmo tempo o capital e a gerência das indústrias que, antes da guerra, nos países agora hostis, haviam funcionado em perfeita harmonia, sob a forma de sindicatos e cartéis. Escusado será dizer que os detentores de tais interesses em cada país "inimigo" não intervinham pessoalmente na gerência desses trusts! Por uma espécie de acordo entre gentlemen, escolhiam-se para directores-delegados cidadãos de países neutros, sabedores e dignos de inteira confiança. Invenção genial, essas empresas prosperaram fabulosamente, vendendo a gregos e a troianos sem discriminação, mantendo vivo em plena guerra o espírito de paz e cooperação internacional, e contribuindo a par disso para acelerar a decisão do conflito, e poupar assim muitas vidas e bens. (Aplausos discretos.) O minério de ferro da Rendânia voltava a esta sob a forma de chuva de obuses e granadas; o carvão da Brancónia e do Littenburgo ia à Lamagna e à Rendânia aquecer os alto-fornos donde saíam os tanques e canhões das ofensivas contra a Brancónia, etc. Não se pode conceber forma mais subtil nem mais elevada de internacionalismo. Isto, meus senhores, é o que se pode chamar génio da cooperação para o bem geral! Chegou-se mesmo à perfeição de proibir que fossem bombardeados, em território nacional ocupado pelo inimigo, os centros de produção empenhados em abastecê-lo de material de guerra.»
José Rodrigues Miguéis, O Milagre segundo Salomé
Sem comentários:
Enviar um comentário