«Deixo morrer a tarde sentado no pátio da casa, à sombra do noveleiro, a olhar um ninho de melro que já criou e a ouvir gemer a cadela cheia de cio na loja. Minha irmã, de chapéu de palha, guarda o milhão estendido na eira, a mexê-lo de vez em quando às rodadas, num ritmo que já vem dos nossos avós. E o ninho vazio, a cadela aluada e o milhão assim mexido enchem-se de não sei que sensação de mistério. Invade-me um estranho sentimento de sagrado, misto de pânico e de deslumbramento, de negrura e de iluminação. O que sei eu desta linhagem de melros que desde que me conheço habitam no quintal? Que força oculta exalta o instinto de procriação da perdigueira? Que hereditariedade determina em minha irmã os mesmos gestos ancestrais? Que ordem oculta reina no cosmos para além dos preceitos transitórios das legislações humanas? Chego ao fim da vida na perplexidade inicial. Quantas mais explicações leio dos fenómenos naturais, mais afastado me sinto da verdade. De uma verdade que não seja de tropismos, de reflexos condicionados, de hormonas, e onde caiba tudo isso.
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