Minha Mãe, certo dia, pôs a questão assim:
- Ou Ela, ou eu!
E ficou resolvido que no dia doze
Minha Mãe parisse,
E pariu!
Pariu e ninguém se opôs! Ninguém!
Como se fosse um feito glorioso
Parir assim alguém, tão nu, tão desgraçado!
Por mim,
Ainda disse que não!
Mas o seu Anjo da Guarda
Era forte e tenebroso...
E aquele frágil cordão
Deixou de ser o meu Pão,
O meu Vinho
E a paz eterna do meu coração
Mesquinho!...
Deixou de ser o silêncio
Delicado e agradecido
Dos meus instintos menores...
Deixou de ser o Norte daquele lago
Onde boiava o meu corpo
Sem alegria e sem dores...
Deixou de ser aquela verdadeira
E sagrada ignorância do meu nome,
Que Satanás me disse, quando disse:
- Respira e come,
Respira e come,
Animal!
(A voz de Satanás já nesse tempo
Era humana e natural...)
Deixou de ser o mundo e foi um outro!
Foi a inocência perdida
E a minha voz acordada...
Foi a fome, a peste e a guerra!
Foi a terra
Sem mais nada!
Depois,
Sem dó nem piedade a vida começou....
Minha Mãe, a tremer, analisou-me o sexo,
E, ao ver que eu era homem,
Corou...
Miguel Torga, O Outro Livro de Job (1936)
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