"Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros ou para o sorriso das vacas."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (revista e acrescentada por Carlos C., segundo Aníbal C. S.)

domingo, 27 de outubro de 2013

Do tempo vivido ao tempo medido ou... dar corda ao relógio

Dar corda ao relógio
(ilustração de meados do século XV)

«Os aparelhos de medir o tempo não aparecem senão muito tarde na história da humanidade. (...) o tempo, sendo essencialmente não mensurável, nunca se nos apresenta senão como provido de já de uma medida natural, cortado já em fatias pela sucessão das estações e dos dias, pelo movimento - e os movimentos - do relógio celeste, que a natureza previdente teve o cuidado de pôr à nossa disposição. Fatias um pouco espessas, sem dúvida. E bastante mal definidas, imprecisas, de duração desigual: mas que importância pode isso ter no quadro da vida primitiva, da vida nómada, ou mesmo da vida agrícola? A vida desenrola-se entre o erguer e o pôr do Sol, com o meio-dia como ponto de divisão. Um quarto de hora, ou mesmo uma hora a mais ou a menos não mudam absolutamente nada. É apenas a civilização urbana, evoluída e complexa, que, por exigências precisas da sua vida pública e religiosa, pode vir a sentir a necessidade de saber a hora, de medir um intervalo de tempo. É só então que surgem os relógios. (...)

Foi nos mosteiros, e por necessidade do culto, que terão nascido e se terão propagado os relógios, e terá sido este hábito da vida monástica, o hábito de se conformar com a hora, que, difundindo-se em redor da muralha conventual, impregnou e informou a vida citadina, fazendo-a passar do plano do tempo vivido ao do tempo medido.»
Alexandre Koyré, Do Mundo do "mais ou menos" ao Universo da Precisão


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