E vice-versa.
«Estava a falar do meu amigo, perdoem-me o desvio: aos vinte e pouco anos o Zé era outra coisa - simpático, barba bem tratada, atelier ali para as Fontainhas, uma maneira fácil e feliz de comunicar, sobretudo com a garotada de S. Vítor, que lhe batia à porta pelo barro com que gostava de brincar. Distante do pesadelo da guerra colonial, ele necessitava daquele desprendimento juvenil, como juvenil era a curiosidade por toda a espécie de material, barro, papel, ferro, pedra, carvão, grafite: tudo os seus dedos procuram aquecer, moldar, como se pensasse com as mãos, o instinto sempre à frente farejando, no rasto da luz ou de um aroma, rente ao chão. Eu passava pelo atelier quase todos os dias ao fim da tarde, morava perto e gostava de o ver trabalhar, além de eu próprio, às vezes, me arrumar para um canto com os meus papéis. São desses dias alguns dos melhores retratos que fez de mim. Depois, como aconteceu à maioria das pessoas, com o 25 de Abril foi-se metendo por toda a parte: Escola, Câmara, teatro, cooperativa, o raio. Mas apesar de tanta dispersão, o José Rodrigues continuava a trabalhar, trabalhava sempre, mesmo depois de quebradas as luzes todas da festa; e era uma alma generosa, e, coisa mais rara ainda num português, era homem de palavra, fazia o que prometera.»
Eugénio de Andrade, É sempre escura a sombra
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