«Outro ano. Toda a gente excitada, e, de conhecido para conhecido, esta senha:
- Boas entradas!
- Igualmente! - responde o contemplado.
E lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à frente, não vá o demo tecê-las.
A estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas mói os ouvidos de quem é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai começar agora - agora que o ano é novo, o século é novo, a idade é nova. No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece. (...)
Mas como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que passa a velho logo que se fazem trezentas e sessenta e cinco tolices...»
Miguel Torga, Diário II (Coimbra, 1 de Janeiro de 1943)