sábado, 30 de abril de 2016
Paulo Varela Gomes
«Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.
(...)
A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga‑me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida.»
(...)
A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga‑me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida.»
Paulo Varela Gomes, Morrer é mais difícil do que parece
Revista Granta n.º 5,
sexta-feira, 29 de abril de 2016
Os paquetes que entram de manhã na barra
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem os meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Álvaro de Campos (de Ode Marítima)
quinta-feira, 28 de abril de 2016
Para que serve a História
Do passado estamos falados!
«Não pode negar-se que uma ciência parece sempre ter algo de incompleto se não for capaz, mais cedo ou mais tarde, de nos ajudar a viver melhor. Como não há-de ser, em particular, muito forte tal sentimento em relação à história, se esta se afigura tanto mais claramente destinada a trabalhar para proveito do homem quanto é certo ter o próprio homem e seus actos por matéria? De facto, uma velha propensão, a que há-de atribuir-se, pelo menos, um valor de instinto, leva-nos a pedir-lhe os meios de orientar a acção;»
Fernando Rosas - a última (?) lição A lição de jubilação |
Marc Bloch, Introdução à História
O Homem; As Viagens
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
(...)
Carlos Drummond de Andrade
Para adoração de todos...
Tarefa cumprida!
Parabéns a quem sonhou que era possível.
("Louco é quem não sonha")
Integrando a colecção do MNAA, A Adoração dos Magos irá tomar o seu lugar na Galeria de Pintura e Escultura Portuguesa, a qual irá reabrir depois de obras de renovação e requalificação.
Parabéns a quem sonhou que era possível.
("Louco é quem não sonha")
Louco é quem não sonha
«O comunismo morreu e o capitalismo ameaça matar-nos a todos. A corrupção da classe política, as crises de refugiados, o aquecimento global, tudo isto são problemas decorrentes da própria natureza do sistema capitalista. É urgente procurar outros caminhos. Sonhar não é loucura. Loucura, hoje, é não sonhar. Na certeza, porém, de que esses caminhos, esses sonhos, só podem ser encontrados por meios pacíficos e democráticos. A democracia, essa utopia primordial, não pode ser posta em causa. Todos somos poucos para a defender.»
José Eduardo Agualusa
Este texto foi originalmente publicado no jornal O Globo.
quarta-feira, 27 de abril de 2016
terça-feira, 26 de abril de 2016
Epígrafe
A sala do castelo é deserta e espelhada.
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?...
Aqui, tudo já foi... Em sombra estilizada,
A cor morreu - e até o ar é uma ruína...
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina -
Um som opaco me dilui em Rei...
Mário de Sá-Carneiro suicidou-se, em Paris, a 26 de Abril de 1916.
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?...
Aqui, tudo já foi... Em sombra estilizada,
A cor morreu - e até o ar é uma ruína...
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina -
Um som opaco me dilui em Rei...
Mário de Sá-Carneiro por João Abel Manta |
"Morro à míngua, de excesso"
segunda-feira, 25 de abril de 2016
Manuel Alegre - Prémio Vida Literária
Prémio Vida Literária 2015/2016 para Manuel Alegre.
Escolha unânime da direcção da Associação Portuguesa de Escritores, tendo em consideração os 50 anos de percurso literário e uma obra "símbolo da luta pela liberdade".
O Prémio neste dia fica-lhe bem.
Cantarei o homem criador crucificado
em suas máquinas. Caçador caçado
por suas armas. Tocador tocado
por suas harpas.
Cantarei o homem vezes homem até ao infinito.
Cantarei o homem: esse mortal-imortal
meu amigo-inimigo. Meu irmão.
Cantarei o homem que transforma tudo
e tão dificilmente se transforma.
Ele que se escreve com h pequeno
em todas as coisas que são grandes.
Cantarei o homem no plural.
Ele que é tão singular
tão impossível de ser outro
senão ele próprio: o homem.
Cantarei o homem vezes homem até à massa.
Cantarei a massa vezes massa até ao homem.
Porque não sei de outra guerra. Não sei de outra paz.
Não sei de outro poema que não seja o homem.
Escolha unânime da direcção da Associação Portuguesa de Escritores, tendo em consideração os 50 anos de percurso literário e uma obra "símbolo da luta pela liberdade".
O Prémio neste dia fica-lhe bem.
Poema com h pequeno
Cantarei o homem criador crucificado
em suas máquinas. Caçador caçado
por suas armas. Tocador tocado
por suas harpas.
Cantarei o homem vezes homem até ao infinito.
Cantarei o homem: esse mortal-imortal
meu amigo-inimigo. Meu irmão.
Cantarei o homem que transforma tudo
e tão dificilmente se transforma.
Ele que se escreve com h pequeno
em todas as coisas que são grandes.
Cantarei o homem no plural.
Ele que é tão singular
tão impossível de ser outro
senão ele próprio: o homem.
Cantarei o homem vezes homem até à massa.
Cantarei a massa vezes massa até ao homem.
Porque não sei de outra guerra. Não sei de outra paz.
Não sei de outro poema que não seja o homem.
O Canto e as Armas
Sabem lá eles o que é sonho!
«As revoluções começam sempre pelo beijo de uma desconhecida na rua. Pela vitória do Sonho.
De súbito, desembarcámos em bandos ardentes numa ilha de gritos e pomo-nos em marcha, enterrando-nos até ao pescoço nas nuvens dos caminhos em frente, convencidos de que não tardaremos a encontrar nos planaltos árvores de prata que nos virão oferecer frutos com dedos de seiva delicada e as flores voarão dos prados em forma de borboletas azuis, para enfeitar os cabelos das crianças.
Que bom!, cantarmos em coro "o povo unido jamais será vencido", e darmos as mãos, e abraçarmos os amigos e beijarmos as camaradas e escrevermos nas paredes "Abaixo o pesadelo!", e rir, rir, rir, para meter inveja ao futuro e irritar os tiranos.
A vida só principia a morder, quando descobrimos que, afinal, o Sonho chamado Revolução apenas torna mais visível a realidade e nos mostra como o mundo é.»
De súbito, desembarcámos em bandos ardentes numa ilha de gritos e pomo-nos em marcha, enterrando-nos até ao pescoço nas nuvens dos caminhos em frente, convencidos de que não tardaremos a encontrar nos planaltos árvores de prata que nos virão oferecer frutos com dedos de seiva delicada e as flores voarão dos prados em forma de borboletas azuis, para enfeitar os cabelos das crianças.
Que bom!, cantarmos em coro "o povo unido jamais será vencido", e darmos as mãos, e abraçarmos os amigos e beijarmos as camaradas e escrevermos nas paredes "Abaixo o pesadelo!", e rir, rir, rir, para meter inveja ao futuro e irritar os tiranos.
A vida só principia a morder, quando descobrimos que, afinal, o Sonho chamado Revolução apenas torna mais visível a realidade e nos mostra como o mundo é.»
José Gomes Ferreira, Revolução Necessária
Fotografia de Eduardo Gageiro |
Pranto pelo dia de hoje
Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto (1962)
domingo, 24 de abril de 2016
Festas da Música e Liberdade
Terminou há pouco o concerto de encerramento dos Dias da Música, que acompanhei pela TV, chegado, precisamente, do CCB.
Terminou em festa e, nesse aspecto, os Dias são e dão continuidade à Festa da Música. São uma democratização da música, de uma música menos costumeira mas que pode ser não menos popular.
É uma festa familiar! E, assim, a Música confirma-se como uma parte importante das nossas vidas, primordial para o nosso bem estar.
Os dois concertos a que assisti hoje, em salas cheias, foram o protótipo do confronto de diferenças culturais e históricas: música medieval galaico-portuguesa, sefardita e de raízes árabes face a duas obras de Mozart intervaladas por uma imprevisível peça contemporânea de Miguel Azguime.
Como indica o próprio tema dos Dias da Música, trata-se de uma viagem à volta do mundo.
Pena serem só 3 dias e não os 80 do Phileas Fogg.
A noite termina em beleza, estrelada e com uma esplêndida lua no céu sobre a foz do Tejo, a antever um bom dia com outra festa: a dos 42 anos da liberdade.
Só essa liberdade possibilita festas da música... ou que a poesia ande na rua.
Terminou em festa e, nesse aspecto, os Dias são e dão continuidade à Festa da Música. São uma democratização da música, de uma música menos costumeira mas que pode ser não menos popular.
É uma festa familiar! E, assim, a Música confirma-se como uma parte importante das nossas vidas, primordial para o nosso bem estar.
Os dois concertos a que assisti hoje, em salas cheias, foram o protótipo do confronto de diferenças culturais e históricas: música medieval galaico-portuguesa, sefardita e de raízes árabes face a duas obras de Mozart intervaladas por uma imprevisível peça contemporânea de Miguel Azguime.
Como indica o próprio tema dos Dias da Música, trata-se de uma viagem à volta do mundo.
Pena serem só 3 dias e não os 80 do Phileas Fogg.
A noite termina em beleza, estrelada e com uma esplêndida lua no céu sobre a foz do Tejo, a antever um bom dia com outra festa: a dos 42 anos da liberdade.
Só essa liberdade possibilita festas da música... ou que a poesia ande na rua.
Amor, que o gesto humano na alma escreve
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
Luís de Camões
Dias da Música 2016 - Mendelssohn
A volta ao mundo...
Antes da orquestra e da última sinfonia de Mendelssohn.
(a ordem de numeração das sinfonias é um mistério!)
Em dia dos 400 anos da morte de Shakespeare, podia ter sido o Sonho de uma Noite de Verão.
Antes da orquestra e da última sinfonia de Mendelssohn.
(a ordem de numeração das sinfonias é um mistério!)
Em dia dos 400 anos da morte de Shakespeare, podia ter sido o Sonho de uma Noite de Verão.
sábado, 23 de abril de 2016
A memória de Shakespeare
«O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo o homem conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vívidas que o homem cinzento que as sonhou, em versos que as gerações não hão de deixar cair, em música verbal.»
Jorge Luís Borges, A Memória de Shakespeare
Como Cervantes, morreu há 400 anos.
Ter-se-ão encontrado, de certeza absoluta...
sexta-feira, 22 de abril de 2016
Como as coisas humanas não sejam eternas
«Por fim, chegou o último de Dom Quixote, depois de recebidos todos os sacramentos e depois de haver abominado com muitas e eficazes razões dos livros de cavalarias. Achou-se o escrivão presente e disse que nunca lera em livro algum de cavalarias que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão sossegadamente e tão cristão como Dom Quixote; o qual, entre compaixões e lágrimas dos que ali se acharam, deu seu espírito, quero eu dizer que morreu.»
Miguel de Cervantes morreu a 22 de Abril de 1616.
Há 400 anos.
Miguel de Cervantes morreu a 22 de Abril de 1616.
Há 400 anos.
quinta-feira, 21 de abril de 2016
Há música que nos dá pouca saúde
O vocalista (agora ex) dos AC/DC abandonou o grupo por problemas de saúde - corria o risco de ficar surdo.
A música do grupo deve ter contribuído para isso: sempre revelou falta de ouvido...
A música do grupo deve ter contribuído para isso: sempre revelou falta de ouvido...
While my guitar...
Show de Prince no tributo a George Harrison (2004).
Mais um a encher o céu de música...
Mais um a encher o céu de música...
segunda-feira, 18 de abril de 2016
Menestrel das Alagoas
Quem é esse viajante
Quem é esse menestrel
Que espalha esperança
E transforma sal em mel?
Quem é esse saltimbanco
Falando em rebelião
Como quem fala de amores
Para a moça do portão?
Quem é esse que penetra
No fundo do pantanal
Como quem vai manhãzinha
Buscar fruta no quintal?
Quem é esse que conhece
Alagoas e Gerais
E fala a língua do povo
Como ninguém fala mais?
Quem é esse?
Quem é esse?
De quem essa ira santa
Essa saúde civil
Que tocando a ferida
Redescobre o Brasil?
Quem é esse peregrino
Que caminha sem parar?
Quem é esse meu poeta
Que ninguém pode calar?
Quem é esse?
Em 1983, Milton Nascimento e Fernando Brant lançaram esta canção, de homenagem a Teotônio Vilela, deputado estadual, vice-governador e senador, natural do Estado de Alagoas.
Teotônio Vilela, tendo militado num partido político de apoio ao Governo militar instituído com o golpe de 1964 - ARENA - acabou por evoluir politicamente para a defesa da democratização do Brasil. No final da década de 1970, aderiu à Frente Nacional pela Redemocratização (e viria a filiar-se no Movimento Democrático Brasileiro, o partido da oposição, a 25 de Abril... de 1979).
Essa Frente patrocinou a candidatura do general Euler Bentes Monteiro (um Bentes!) à presidência, em 1978. Euler Bentes Monteiro perderia, com 39,9% dos votos de um colégio eleitoral (226 votos contra 355 do general João Baptista Figueiredo).
A canção Menestrel das Alagoas tornar-se-ia um dos hinos da campanha das Diretas-Já, movimento que exigia que o Congresso aprovasse a emenda constitucional instituindo a realização da eleição directa para a presidência da República, visando pôr fim ao regime militar.
As eleições de 1985, com a vitória de Tancredo Neves, foram as últimas por via indirecta, tendo encerrado a ditadura militar.
O disco de Milton, Milton Nascimento ao vivo, inclui essa canção e Coração de Estudante, o outro "hino" das Diretas-Já.
Comprei esse LP no dia do meu casamento, em 1984.
E lembrei-me destas músicas (e da sua história) a propósito dos acontecimentos no Brasil.
Com tanto caminho andado, por onde irá a democracia brasileira?
domingo, 17 de abril de 2016
Gares Marítimas com os painéis de Almada Negreiros
Dia Internacional dos Monumentos e Sítios
«Tejo, lombada do meu poema aberto em páginas de Sol (...) Nós temos todos os rios de que precisamos. O Tejo é o maior; nasceu em Espanha, como outros, mas não quis ficar lá (...) Nós também temos varinas que vão pelas ruas como barcos sobre o Mar. - Elas sabem a sal. E trazem o Mar nas suas canastras.»
Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur
Dois dos painéis da Gare Marítima de Alcântara
(sobre Lisboa e o Tejo)
Janelas das Gares Marítimas
Ah, o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha.
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fundo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha.
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.
Álvaro de Campos, Ode Marítima
Gares marítimas de Alcântara e de Rocha do Conde d'Óbidos.
sábado, 16 de abril de 2016
quinta-feira, 14 de abril de 2016
Amadeo a caminho de Paris (1906)
«Há os que partem e retornam, tendo Paris como farol donde chegam as novas do Planeta. Cumprir-se nessa cidade, com os boulevards descerrados às efemérides e ao sonho, parecerá aos insatisfeitos o único risco a correr, o único sobejante da apatia a que o berço os condenou. Daí que se torne instante abalar.»
«Lisboa, quinta-feira. Minha Maman: Chego agora de Linda-Pastora sob a luz offuscante dum sol que não quer acreditar que o inverno está próximo. (...) Eu e o meu camarada embarcamos amanhan. O tempo está limpo e sereno e o vapor já nos espera ali no Tejo. Tenho uma grande dôr de os deixar, a si, ao santo do Papá e a todos. Além disso, eu sou um espírito dramatico e a minha alma representa sempre uma tragedia em que eu sou o unico espectador. Contudo, no meio deste luto, eu vou rindo - rindo diabolicamente. Isto não quer dizer que me julgue infeliz - não. Se qualquer quizesse trocar a sua infelicidade pela minha desgraça eu não trocava. Os meus destinos só estão bem commigo, ou por elles triumpho ou por elles sou esmagado. Adeus minha Mãe, esperam-me para comprar bilhete - adeus. Mil coisas do coração do seu filho Amadeo.»
«A caminho de Paris, com Francisco Smith, perscrutando da coberta ondulante o deslizar da chuva pelas vidraças, Amadeo visaria mais à frente que à retaguarda.»
«Lisboa, quinta-feira. Minha Maman: Chego agora de Linda-Pastora sob a luz offuscante dum sol que não quer acreditar que o inverno está próximo. (...) Eu e o meu camarada embarcamos amanhan. O tempo está limpo e sereno e o vapor já nos espera ali no Tejo. Tenho uma grande dôr de os deixar, a si, ao santo do Papá e a todos. Além disso, eu sou um espírito dramatico e a minha alma representa sempre uma tragedia em que eu sou o unico espectador. Contudo, no meio deste luto, eu vou rindo - rindo diabolicamente. Isto não quer dizer que me julgue infeliz - não. Se qualquer quizesse trocar a sua infelicidade pela minha desgraça eu não trocava. Os meus destinos só estão bem commigo, ou por elles triumpho ou por elles sou esmagado. Adeus minha Mãe, esperam-me para comprar bilhete - adeus. Mil coisas do coração do seu filho Amadeo.»
«A caminho de Paris, com Francisco Smith, perscrutando da coberta ondulante o deslizar da chuva pelas vidraças, Amadeo visaria mais à frente que à retaguarda.»
Mário Cláudio, Amadeo