domingo, 29 de março de 2020

Como queiras, Amor...

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Marc Chagall, Os Amantes
 

Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárnio, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

Jorge de Sena, in Post-scriptum

Poderia ter sido dedicado a Mécia de Sena.

Uma boa noite


Mécia de Sena (1920-2020)

A escritora Mécia de Sena faleceu ontem, em Los Angeles, poucos dias depois de ter completado 100 anos de vida.

Viúva de Jorge de Sena, foi a sua grande colaboradora e a organizadora da sua obra, mesmo depois da morte do escritor. Essa sua tarefa, cumprida até ao fim, terá levado a abdicar de uma carreira própria.
«(...) Mécia, a mulher que recusou ser o lugar de espera para ser a activa companheira de uma singularíssima aventura intelectual e moral.» (Baptista Bastos)
Foi Jorge de Sena que reconheceu a impossibilidade de ter realizado tudo o que conseguiu, como escritor e como professor, sem o apoio de Mécia de Sena.


«"Entre os vários rapazes com quem dancei, houve um que fora totalmente desconhecido. À despedida, perguntara-me o meu nome. Meses depois, cruzámo-nos numa conferência (...). Passados outros meses, encontrámo-nos num recital (...). Disse-me que também escrevia poemas (...). O nosso conhecimento mútuo a bem dizer nem se iniciara e iria fazer-se através de correspondência que se lhe seguiu".
A rejeição do "caminho mais fácil" entre ambos, "deu lugar a uma confiança e uma identificação que dificilmente poderão ter paralelo", escreveu então Mécia de Sena. "Não sem agruras e com algumas duras provas, ambas resistiram durante quase 30 anos, afinal o nosso 'para sempre' dignamente cumprido."»
Mécia de Sena
(no DN de hoje)


sábado, 28 de março de 2020

Complexo? (2)

Na busca de uma pintura sobre a cobrança de impostos no período moderno, encontrei várias pinturas de Marinus van Reymerswaelere - parece ter sido o tema mais recorrente da sua pintura - e reencontrei o cobrador de Pieter Brueghel, o Novo, de que existe um exemplar na Casa-Museu Medeiros e Almeida.

Brueghel, o Novo - Cobrador de impostos
Li a informação do Museu sobre o quadro:
«O tema abordado – o pagamento de impostos ou o escritório do advogado – era relativamente frequente e popular na Flandres do século XVII, resultando de uma sociedade em que a atividade financeira se tinha desenvolvido muito rapidamente.
O facto de a figura principal ter uma certa semelhança com um espanhol fez com que esta obra tenha sido identificada como uma crítica às condições sufocantes que o povo dos Países Baixos suportou durante a ocupação filipina.»

Parece confirmar-se o complexo neerlandês em relação à Espanha.


Pelo capital

Dedicado aos portugueses que pagam impostos nos Países Baixos:

Já vem dos Países Baixos
esta voz que desanima:
“Tereis que pagar os pachos
com os juros bem acima.
Vossos varões mais prudentes
aqui pagam seus impostos,
para termos bem presentes
as cobranças dos despojos.
Quisestes manter salários,
saúde paga, pensões?
Ides pagar honorários
que nem sonhais em visões!
Pagareis cada tostão
a custo bem acrescido
e com diário sermão
pra verdes que é merecido.
Sois piegas, sois caipiras,
sois tenores sem consciência,
toureiros tolos, fadistas
cegos a obediência!
Cá do Norte vos dizemos:
morrer pelo Capital!
E a Bíblia que vos lemos
além do Bem e do Mal.
Morrer pelo equilíbrio
das finanças dos mais fortes,
morrer sem qualquer delírio
isto é vencer a Morte!
Se os juros vão aumentar
e os velhos diminuir,
do que temos a ganhar
não poderemos fugir”

Eis que surge p’la calada
um descante português:
“Tomaremos essa estrada
mais além do holandês”
Luís Castro Mendes



Complexo?


Será que a posição do ministro neerlandês (eles não querem que lhes chamem holandeses) reflecte, ainda, um complexo resultante do domínio espanhol sobre os Países Baixos nos séculos XVI e XVII?



sexta-feira, 27 de março de 2020

Tanta coisa para descobrir aqui dentro

«Não sei quanto tempo terei de estar fechada em casa, mas existe, de certeza, tanta coisa para descobrir aqui dentro. Todas as casas têm passagens secretas. Se nos pusermos a procurá-las, descobri-las-emos. Hão de levar-nos a sítios onde nunca fomos. Se nos unirmos nessa busca, poderemos torná-los maravilhosos. E outro futuro há de chegar.»
Dulce Maria Cardoso, Visão, 26 de Março



terça-feira, 24 de março de 2020

Uderzo (1927-2020)




Faleceu o ilustrador Albert Uderzo, um dos criadores de Asterix.

Este ano já foi inaugurada uma estátua de René Goscinny, o argumentista de Asterix, em Paris, frente ao prédio onde morou nos seus últimos 10 anos de vida.
Uderzo e Goscinny, uma parelha de enorme criatividade.


segunda-feira, 23 de março de 2020

A quarentena da leitura

«Há gente dentro dos livros. Tem um modo de vida que se traduz em história, humanidade, sonho, riso, sorriso e também nos seus contrários. Por exemplo, a dor da memória, a tragédia na própria pessoa ou na dos outros. Pessoas como nós, evidentemente. Mas o melhor dos livros talvez seja tanto o prazer da sua escrita como a sua linguagem criada por nós para os outros. Essa gente que vive dentro dos livros nunca diz que se sente só – esteja ela em casa, num lugar mais estranho ou num tempo de excepção ao próprio quotidiano. Leiam como essa gente respira, ela que vive dentro, na alma e na palavra do livro. Fala para nós, vê-nos, aponta-nos o dedo ao pensamento e ao coração. Afinal ela somos nós. O livro é um espelho onde se mira a condição humana. Ler livros foi a melhor dádiva que recebi da vida. A leitura ajuda, e muito, a sair de uma realidade para outra. Sempre com a possibilidade de um regresso a nós mesmos. Ora leiam também como eu respiro.»
João de Melo



sábado, 21 de março de 2020

Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

Poema de Al Berto.
Música de Francisco Ribeiro.


Dia Mundial da Poesia


sexta-feira, 20 de março de 2020

Uma Primavera despercebida

Ocorreu às 3:50 horas o equinócio da Primavera, no hemisfério Norte.
A essa hora, o Sol, no seu movimento aparente no céu, passa "para cima" do equador celeste, dando início à Primavera. Assim, ao amanhecer, o Sol nasceu no ponto cardeal Este (imagem acima), e pôs-se no ponto cardeal Oeste (imagem de baixo).


Até ao início do outono, o comprimento do dia passa a ser maior do que a duração da noite, devido ao facto do Sol percorrer um arco mais longo e mais alto no céu todos os dias, atingindo uma altura máxima no início do Solstício de Verão.



quarta-feira, 18 de março de 2020

Life, life

«Claro que estamos em guerra, e é uma guerra de cerco, cada um de nós cerca o outro e está cercado, queremos derrubar as muralhas do outro e manter as nossas, o amor virá quando não houver mais barreiras, o amor é o fim do cerco»
José Saramago, O Cerco de Lisboa




Van der Graaf

Encontrei o anúncio da próxima digressão dos Van der Graaf Generator.
No princípio de Abril, anunciam-se várias cidades italianas.


Sendo septuagenários todos os membros dos VDGG, é uma digressão de risco.


Cuidem-se!
E muita saudinha...


terça-feira, 17 de março de 2020

segunda-feira, 16 de março de 2020

Escolas com muitos recursos e ferramentas


Com um título destes, parece que é para muito poucas escolas.
Mas é para todos!

E deixo o link: http://apoioescolas.dge.mec.pt/
Pode ser útil.



À espera das andorinhas


«Portugal, nos primeiros dias de primavera, é coberto de asas e o céu azul chilreia. Toda a gente espera as andorinhas. As rústicas escolhem os campos; e as outras procuram as vilas, as cidades, a convivência dos homens e os velhos beirais a cair para uma banda. Conhecem as pessoas, entram pelas janelas com familiaridade, e na antiga casa da aldeia até dentro da sala constroem o ninho. […]

Conhecem Portugal a palmos: as eiras do Minho, com alguns punhados de milho, e as vastas eiras do “monte” alentejano; os descampados do sul com alguns pinheiros mansos isolados, e o homem do Algarve que desbrava a terra a fogo e pesca o atum na costa. São elas que põem Portugal em comunicação com o céu, e que fazem a primavera nos primeiros dias de Março. Não há verdadeira primavera nos países onde não há andorinhas.»
Maria Angelina e Raul Brandão, Portugal Pequenino (1930)


Manet, As andorinhas


quinta-feira, 12 de março de 2020

A vida é fictícia... - Raul Brandão

«A vida é fictícia, as palavras perderam a realidade. E no entanto esta vida fictícia é a única que podemos suportar. Estamos aqui como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até à cova sem dar por ela. E não só esta vida monstruosa e grotesca é a única que podemos viver, como é a única que defendemos com desespero. — Pois sim... pois sim... Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca-de-três. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que é único e um só, damo-lo como se fosse uma insignificância.»
Raul Brandão, Húmus

Raul Brandão nasceu a 12 de Março.



quarta-feira, 11 de março de 2020

Governo pondera fechar praias


As escolas podem manter as portas abertas.


Tudo o que fizermos durante...

«Tudo o que fizermos antes de uma pandemia parecerá alarmista. Tudo o que fizermos depois parecerá inadequado.»
Michael Leavitt


Retirado do fb.

terça-feira, 10 de março de 2020

Boris Vian no dia dos seus 100 anos

Há uns anos adoptei uma definição do que é um bom livro: é aquele que nos faz passar da paragem em que devíamos descer.
Nunca me aconteceu tantas vezes como quando andava a ler O Outono em Pequim.
Devia ser porque andava mentalmente no autocarro 975.

«Amadis Dudu seguia sem convicção nenhuma pela estreita ruela que representava o atalho mais longo para chegar à paragem do autocarro 975. Todos os dias tinha de apresentar três bilhetes e meio, pois descia, com o autocarro em andamento, antes da paragem; tacteou o bolso do colete para ver se ainda tinha algum bilhete. Sim. Viu um pássaro empoleirado num monte de lixo, a bicar em três latas de conserva vazias o que conseguia reproduzir o início dos Barqueiros do Volga; parou, mas o pássaro deu uma fífia e, furioso, levantou voo, resmungando, entre bico, umas obscenidades à pássaro. Amadis Dudu retomou o caminho, cantando o resto da música; mas deu também uma fífia e começou a praguejar.»
Boris Vian, O Outono em Pequim

Boris Vian, o centenário do dia!, engenheiro, escritor (de poesia, novelas, contos, teatro), tradutor, músico de jazz, autor de canções, cantor, crítico musical... E morreu tão cedo!...



segunda-feira, 9 de março de 2020

Formas de enfermidade

«Há muitas formas de enfermidade, a paranóia é uma delas.»
José Luís Peixoto


Max von Sydow (1929-2020)

Max von Sydow (Carl Adolf von Sydow), um dos actores preferidos de Ingmar Bergman, que com ele começou a trabalhar no teatro e realizou 11 filmes, faleceu este Domingo.
O seu papel mais icónico, aquele que me ficou fortemente gravado na memória, foi o do cavaleiro que, em O Sétimo Selo (1956), num ambiente de fim da época das Cruzadas e de peste, defronta a morte numa partida de xadrez.


Em época de epidemia, como o cavaleiro, a nossa esperança é adiar o mais possível o desenlace fatal.


domingo, 1 de março de 2020

Casa do Largo do Menino Deus


«Aí temos a peça que nos faltava para o par de miniaturas quinhentistas do sítio do Menino de Deus. É esta casita, não menos pitoresca, pequenina, inevitavelmente côr-de-rosa, de delicado traço, com sua escada exterior, a sua janela, antiga adufa, encostada ao beiral do telhado, que lhe cai como um "sombrero" curto, a sua porta esguia, monumento de humildade encravado num prédio, quási tão modesto como ela. A propriedade desta relíquia, que - deve dizer-se - apenas exteriormente guarda a sua poesia, tem andado por bastantes mãos; não constitui título hereditário de nenhuma família. Hoje é do sr. Manuel Torrão, e quem sabe se o será amanhã. É um "monumento nacional" de pôr em cima de um contador Renascença de um Museu ainda por criar.»
Norberto Araújo, Peregrinações em Lisboa (1935)

A casa, em fotografia do princípio do século XX
 A casa vista por artistas:

Francis Smith (1927)

Roque Gameiro (entre 1910 e 1920)

Túlio Vitorino (1932?)