quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Júlio Dinis, a Morgadinha e a História

Um dos aspectos que pragmaticamente me interessa na Morgadinha é a ajuda a uma melhor compreensão da 2.ª metade do século XIX.

Para além das personagens centrais, mais laboriosamente trabalhadas, temos um conjunto de tipos sociais que ilustram o microcosmos descrito pelo escritor. «Copiava finamente, com um cuidado de miniaturista, as suas figuras, ternas ou joviais, e os planos esbatidos das suas paisagens.» (Eça de Queirós, As Farpas)

O narrador remete-nos para o período da Regeneração e são múltiplas as referências às mudanças sociais que então acontecem no país, mas sobretudo no meio rural.
A vida no campo ganha contornos de uma vida edílica, em oposição à da cidade, onde as mudanças impostas pelo progresso ameaçam corromper moralmente e pôr em risco o bem estar das pessoas. É assim que Henrique de Souselas parte para a província, “esgotado de civilização”.

A viagem é demorada, difícil... A modernização do país através da política fontista, com a construção de estradas e o desenvolvimento dos transportes está presente em vários momentos no romance.
Pelo romance passam representantes do velho clero anti-liberal e velhas beatas fanáticas, povoações facilmente manobradas para se oporem à utilização dos cemitérios como local de enterro e para votarem de acordo com as manobras caciquistas. O oportunismo político, com o desfile de promessas e de favores com intuitos eleitorais, é posto às claras.
A importância atribuída à educação/instrução como meio de progresso é uma afirmação de esperança repetida. E é tão forte que a Morgadinha acaba por casar com o preceptor das crianças, personagem de uma integridade moral inquestionável.

Ilustração de Roque Gameiro para A Morgadinha dos Canaviais (?)*
O final feliz é o melhor sinal da crença na capacidade do Homem para construir um mundo melhor:
Henrique, o elegante do Chiado, está curado, adora Cristina (que adora Henrique) e torna-se um “rico e laborioso proprietário rural” apaixonado pela agricultura. A quinta sob a sua superintendência “é uma das mais rendosas e bem geridas propriedades daqueles sítios”. [ai se o Álvaro sabe!!]
Augusto, o preceptor, vive feliz com Madalena (que vive feliz com Augusto) e, para além de se ocupar da agricultura, “alimenta a imaginação (...) a organizar a escola sob bases mais racionais, e dotação mais fecunda”. [ai se o Nuno Crato sabe!!] E, também, “a generalizar e educar os processos agrícolas, a implantar indústrias novas.”

Ironia...
Sobre o conselheiro, tornado ministro, o autor resume (deliciosamente):
«Estive tentado a dizer, para satisfação de ânimo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos e aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda pública, prosperou a agricultura e a indústria, refulgiram as artes e as letras; e que Portugal, como a Grécia sob Péricles, causou o assombro das nações do mundo.
Mas receei que, fantasiando no nosso país um governo fecundo e próspero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no espírito dos leitores a dos outros episódios narrados, e lhes entrasse com isto a desconfiança no cronista. Resolvi pois ser franco, declarando que, sob a direcção do conselheiro e dos seus colegas, Portugal regeu-se, como se tem regido sob as dúzias de ministérios, que nós todos havemos já conhecido.»

Ou seja, Júlio Dinis pode ser o escritor mais optimista do mundo, exagerar na felicidade romântica das suas personagens, mas, em Portugal, quando se fala de Governos, todos caímos na realidade. Não há optimismo que nos salve da descrença nos governos!!



* Foi assim que encontrei referida esta ilustração. As ilustrações mais conhecidas de Roque Gameiro para obras de Júlio Dinis são as de As pupilas do senhor reitor. Com a visita à casa de Roque Gameiro, queria descobrir que outras ilustrações tinha feito para obras de Júlio Dinis, nomeadamente sobre A Morgadinha dos Canaviais. Não descobri nada. Quem souber mais que diga.

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