«É quase meia noite. Numa inquietação crescente, vou
escrevinhando a consultar o relógio a cada momento. Quero assistir à passagem
de ano. Faltam vinte minutos, faltam quinze, faltam dez... Um agiota não faria
melhor se estivesse ao pulso de um agonizante de quem esperasse herdar uma
grande fortuna. E acabo por me rir. Farto de saber que nada vai mudar, roído de
desilusões, e teimo na estupidez das mais vezes! Simplesmente, não desisto. A
razão argumenta, a experiência ensina, e nos recônditos do meu ser nenhuma
lição de objectividade encontra eco. Orgulhosos da nossa ciência, e seguros de
que dominamos a natureza, zombamos dos nossos avós e dos rituais com que
tentavam exorcizar as forças do mal e propiciar a renovação do tempo. Mas, no
fundo, continuamos supersticiosos e crédulos como eles. A abafar ruidosamente a
emoção a tiros de petardo ou de champanhe, ouvimos bater as doze badaladas na
secreta esperança de que elas sejam a meta remissa do passado e o ponto de
partida dum futuro redentor. Assim persiste sob a máscara soberba do civilizado
a humildade do primitivo. A humildade que o mantém vivo nas selvas da
ignorância, ao lado do morto que vai sendo nas avenidas da sabedoria...»
quarta-feira, 1 de janeiro de 2025
Transição...
Miguel Torga, Coimbra,
31 de Dezembro de 1969 (Diário XI)
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