sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Celeste Caeiro - o acaso do nome da Revolução


«O soldado pediu-me um cigarro. Eu não fumava, nunca fumei. Por segundos, fiquei a pensar como poderia compensar aquele rapaz, ali, em cima daquele carro, a lutar por nós. Estava ali a dar-me uma coisa boa e eu sem nada para lhe dar. Sem pensar, tirei um cravo do ramo que levava e ofereci-lho.
Nunca me passou pela cabeça que, por causa disso, o 25 de Abril viesse a ser conhecido mundialmente como a Revolução dos Cravos.
Nunca se conseguiu encontrar aquele rapaz. Sempre que penso naquele dia choro. Tinha 40 anos, cuidava da minha mãe e da minha filha. Morava no Chiado e adorava a cidade onde nasci. E ainda adoro.
Tenho 90 anos, ouço e vejo muito mal. Comovo-me muito a falar deste dia. Os médicos dizem que me faz mal. Vou pedir à minha neta que lhe conte o resto da história. Viva o 25 de Abril! Se o deixarmos morrer teremos de fazer outro.»
Celeste Caeiro


«Havia sempre nos livros da escola a referência à Revolução dos Cravos. A cada ano, mal recebia os manuais, ia de imediato à procura dessas páginas. Sabia que as professoras, nem que fosse uma vez por ano, haveriam de falar no assunto e que eu, mais uma vez, ficaria em silêncio. Nunca disse na escola que foi a minha avó que deu o nome à revolução. Apesar de todo o orgulho que tenho. Acredito mesmo que aquele gesto foi obra do destino.

A minha avó Celeste é filha de uma espanhola de Badajoz e de pai desconhecido. Com dois irmãos, mais velhos, cresceu na Casa Pia. À minha bisavó custou-lhe até muito deixar ali os filhos, que visitava regularmente. Nunca os abandonou.

A minha avó era a menina favorita da diretora do colégio. Fez o Curso de Enfermagem, mas como tinha problemas pulmonares não pôde exercer. Porém, a menina Celeste foi sempre independente. Nunca se casou com o meu avô. Quando o meu avô se portou mal, tinha a minha mãe 3 anos, separaram-se. Para consolar a minha avó, quis oferecer-lhe um fio de ouro e mais coisas. Mas a minha avó não quis saber dos presentes, nem dele. Sozinha, continuou a cuidar da filha e da mãe.

Em abril de 1974, trabalhava num restaurante. O restaurante fazia um ano no dia 25 de abril. Os cravos eram para dar aos clientes. Com o restaurante fechado, as empregadas ficaram com as flores.
Dá-se então o feliz episódio, no início da Rua do Carmo. Um fotógrafo (Carlos Gil) assistiu à cena. Publicou a fotografia. No dia seguinte a minha avó foi trabalhar. Já os colegas tinham ligado para a Crónica Feminina, que logo a foi entrevistar.

Este ano, esse episódio será reconstituído. A minha avó gostava muito que uma placa assinalasse o local. Algo a dizer que foi ali que nasceu o nome Revolução dos Cravos. Ou até ter ali uma pequena estátua.

Falar do 25 de Abril emociona-a muito. Nestes períodos, fica melancólica. Acreditamos que o AVC que sofreu pouco depois das comemorações dos 25 anos de Abril terá tido a ver com as emoções que sentiu. No entanto, tem sido muito ignorada por todos.

Não há fotografias da minha avó com 40 anos. No incêndio do Chiado, perdeu a casa e todos os pertences. As fotografias arderam. Foram-se todas as recordações. Vive há anos num prédio a cair aos bocados, perto da Avenida da Liberdade. Podia viver com a filha e a neta em Alcobaça. Mas à minha avó, alfacinha de gema, ninguém a consegue tirar de Lisboa.

A minha avó, que continua a prestar muita atenção às notícias, está muito preocupada com o país. Na noite das últimas eleições, ao contrário do que é hábito, foi deitar-se cedo. “Não estou para ver esta miséria.” A mim ensinou-me desde miúda que o valor mais importante é o da liberdade."

Carolina (23 anos, mestre em Direito, quer ser magistrada)

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles, Diário de Notícias, 23/04/2024


Celeste Caeiro faleceu hoje, aos 91 anos.


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