sexta-feira, 29 de março de 2024

Cheirava a revolução no Coliseu

Em Março de 1974 a direcção da Casa da Imprensa organizou o I Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios de Lisboa. Serviria como cerimónia de entrega dos Prémios da Imprensa de 1973 nas categorias de rádio, música ligeira, música erudita, televisão, bailado e literatura.

O Governo tentou impedir o espectáculo, mas este veio a realizar-se no dia 29 de Março de 1974, depois de conversas com instituições do regime, negociações, avanços e recuos, cedências...

«Nós passámos cerca de mês e meio a organizar o espectáculo porque vinham proibições, autorizações, proibições. Na própria noite do espectáculo, fomos autorizados a actuar, pelas 10h 20m [da noite], com as letras cortadas. E estão seis ou sete mil pessoas à espera. Na rua, a GNR e a PIDE estavam em tudo quanto era sítio para impedir o espectáculo. Este acaba por se realizar, e o Fanhais é o único que fica impedido de actuar, sentado na assistência.» (José Jorge Letria)

Às 22 horas, ainda Caetano de CarvalhoSub-secretário de Estado da Informação e Turismo, foi ao Coliseu negociar o cancelamento do espectáculo em nome do bom senso.

Pela primeira vez juntavam-se em palco José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Pardes, Manuel Freire, Fausto, Vitorino, Ary dos Santos, Carlos Alberto Moniz, Maria do Amparo, Nuno Gomes dos Santos, José Jorge Letria, Fernando Tordo, José Barata Moura, entre outros. Muitas foram as canções censuradas e muitos cortes foram feitos às canções que podiam ser cantadas.

Os músicos tiveram a coragem de fazer várias afirmações que denunciavam a censura. Adriano foi directo: «Não será necessário dizer-vos que aquilo que vamos cantar não foi exactamente escolhido por nós, (...). Nós todos gostávamos de lembrar, (...) os nossos companheiros que neste momento estão impedidos de estar aqui connosco. Falamos de muitos, mas podemos citar o José Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Francisco Fanhais, o Luís Cília, enfim, todos os outros milhões de portugueses que (...) estão fora da nossa terra, seja na Europa seja noutros continentes, como em África, por circunstâncias alheias à sua vontade directa.»

José Afonso explicou que «os habituais impedimentos que surgem sempre nestas ocasiões, que aliás são muito raras, obrigam-me a cantar uma canção que pelo menos poderá ser cantada por todos nós, que é a Grândola. (...) A canção que resta é Milho Verde. Havia outras canções, mas não existem instrumentos para elas... Rigorosamente, as duas que podem ser cantadas são estas duas.»

Grândola, Vila Morena, aos olhos dos censores, não tinha parecido subversiva.

«Filas e filas da plateia, das bancadas, dos camarotes, das galerias eram massas de gente, de braços dados, como que a participar de um fantástico cerimonial.» (Capital, 30 de Março de 1974)

O Estado Novo estava caduco e aquele foi um "momento mágico" que parecia o presságio de um novo tempo.

«Foi o principal momento em que a canção política se apresentou perante uma multidão, como um espectáculo de massas; foi um grande contributo dos músicos para, naquela altura, confrontar o regime com a sua fragilidade.» (José Jorge Letria)


Este espectáculo foi gravado por dois técnicos da Rádio Renascença e transmitido no programa Limite. As bobines foram oferecidas, há alguns anos, ao arquivo sonoro da RTP, estando disponível na RTP Play. Também se encontra no YouTube. 

O programa Limite seria o escolhido para a passagem de Grândola como senha do 25 de Abril, por Carlos Albino, um dos espectadores do I Encontro da Canção Portuguesa.


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