sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Eugénio de Andrade - A voz da mãe e da natureza na poesia

«Por mais voltas que dê, é sempre à minha mãe que vou ter quando me ponho a imaginar como é que a poesia se me cravou tão fundo na carne. À minha mãe e àquele lugar onde os meus sentidos despertaram para uma luz atravessada por um chiar de carros de bois pelas quelhas, a caminho das terras baixas dos lameiros. É sempre àquela fonte que regresso.»

«Depois da ceia, arrumada a cozinha, às vezes minha mãe sentava-se no balcão e cantava. Cantava um desses romances de que eu entendia melhor o ritmo do que as palavras. E não tardava que outras vozes se misturassem com a sua, e não raramente se lhes juntava o som ácido de um realejo, ou o do harmónio, menos acidulado. E foram esses ritmos, essas palavras de misterioso significado que me cativaram e passaram aos meus versos, mas isso só o soube muitíssimo mais tarde, depois de percorrer em livros outros caminhos. Porque esta é a poesia que sempre foi a minha: uma voz que no corpo se faz alma para que noutras almas regresse ao corpo. Essa poesia teve origem nestas terras, entre a luz esfarelada e a poeira levantada por cabras e ovelhas, rompeu na boca e nos olhos daquela gente, despertou com o calor de outros corpos em enxergas de folhelho ou sobre a palha rala de alguma choça de pastor, quando eu anos mais tarde ali vinha ritualmente passar as férias grandes - grandes, grandes, grandes, porque então nem os dias nem as noites tinham fim. Será preciso dizer que foi também nestas terras que os sentidos despertaram e se abandonaram ao desejo doutro corpo?»

Eugénio de Andrade, Rosto precário

Eugénio de Andrade - ilustração de Cristina Valadas

Eugénio de Andrade faria hoje 100 anos.


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