domingo, 12 de novembro de 2023

António Maria Lisboa - RAOMOMAR

RAOMOMAR

amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico
- MAR

mar perdido de conchas no meio do mar
mar de marés justapostas de amor num mar de marfim
perdido no teu joelho de marfim
mar de bosques que anuncia ao estrangeiro a terra perfumada
oceano no teu oceano de olhar
Ísis a mulher de Osíris - a realidade misturada
no MAR
mar que te apontei do alto da torre coberta pelo nevoeiro
pelo avião que atravessa o espaço
pelo incêndio que percorre o mundo num autocarro
pelo soerguer do teu corpo semi-quente na madrugada 

mar azul-vermelho queimado de arestas
mar de dedos frios, de velas sibilinas na noite de cristal
mar de sonâmbulos esquecidos a medir o espaço com fitas de estrelas
mar de passageiros estranhos e abismados
mar de casas altíssimas onde habitam as cidades

MAR para que não me chegam os olhos
mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar por cima
mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos
mar onde guardei o aquário azul que trouxe até hoje na memória

e só hoje te espalho para o mundo MAR
onde é possível e provável o envenenamento total da espécie
onde descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra
e todos os dias mergulho em fogo

Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso - MAR

mar com uma bala direita no cérebro
mar sem apoio em nenhum ponto do espaço, mas preso apesar de tudo numa
enorme teia diabolicamente construída para conseguir ser livre
mar de submarinos insondáveis que navegam o infinito do mar
mar espacial de sons, de cores, de imagens, de mil anos passados que
percorremos

MAR que flutua no MAR abusivamente medonho

amor esquecido, amor distante, amor insolente

António Maria Lisboa

Passaram ontem 70 anos sobre a morte de António Maria Lisboa, aos 25 anos, vítima de tuberculose.

«Preocupado com uma verdadeira aproximação às culturas exteriores à tão celebrada civilização ocidental, há na sua poesia uma busca incessante de um futuro tão antigo como o passado. Pode, e decerto deve, ser considerado o mais importante poeta surrealista português, pela densidade da sua afirmação e na direcção desconhecida para que aponta.»
Mário Cesariny


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