domingo, 30 de agosto de 2020

Poema para o Nikias

«O Nikias pediu-me um poema - que seria inspirado numa gravura que me ofereceu...
Mas não me sai nada. Ou, com mais sinceridade: quando saltei da cama, tive a intuição do primeiro sinal.
Estas palavras:
A cidade de cristal.
Então, a sorrir, lembrei-me de que essa intuição estava há muito escrita num papelinho, ainda não aproveitado na Cidade Inexacta e talvez adaptável ao caso.
Cá está. Copio:

O cristal da cidade
tem muros de pedra 
que cega o silêncio...


Traços violentos sobre tudo isto e, a seguir, estas palavras já com sabor de poesia
(porque aparecem as palavras morte e flores?):

A morte
é o outro lado das flores.


Mais abaixo outra versão:

A cidade de cristal
oculta na sombra dos corredores
- olhos de pedra nas crianças...


E o final inevitável:

A morte
é o outro lado das flores...


Mais riscos e, por fim, a poesia:

Pedras secretas
para a cidade de cristal
oculta na sombra dos corredores
do musgo inquieto...

A morte 
é o outro lado das flores...


Existem mais hipóteses. Entre elas uma em que substituí a palavra morte por vida (E até por sonho...)

A vida
é o outro lado das flores...

Oh! a aventura dos poetas que cantam por aproximações e experiências sucessivas!»
José Gomes Ferreira, Dias Comuns VI


Nikias Skapinakis, Retrato de José Gomes Ferreira


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