sábado, 5 de maio de 2018

Ser (pura e simplesmente)


«Os tempos em que vivemos poderiam ser a melhor das épocas para se estar vivo, porque estamos rodeados de por descobertas científicas espectaculares e por um brilho técnico que tornam a vida cada vez mais confortável e conveniente: porque a quantidade de conhecimentos disponível e a facilidade de acesso a esses conhecimentos nunca foram tão elevadas, acontecendo o mesmo em relação à interligação humana a uma escala planetária, como se prova pelas viagens, pela comunicação electrónica e pelos acordos internacionais sobre todos os tipos de cooperação científica, artística e comercial; porque a capacidade de diagnóstico, gestão e até cura de doenças continua a aumentar e a longevidade continua a prolongar-se de tal forma que se espera que os seres humanos nascidos após o ano de 2000 possam viver, e bem, segundo se espera, até uma média de 100 anos. Em breve seremos conduzidos por veículos robotizados que nos poupam esforços e vidas, pois, a certa altura, deveremos ter menos acidentes fatais. 

No entanto, para considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. Ao que parece, não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser. Parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia modernas, e que mais lucram com elas, parece estar numa situação de bancarrota “espiritual”, tanto no sentido secular como religioso do termo. A julgar pela aceitação despreocupada das crises financeiras problemáticas – a bolha da internet de 2000, os abusos hipotecários de 2007 e o colapso bancário de 2008 – parecem igualmente estar numa situação de bancarrota moral. Curiosamente, ou talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que beneficiaram com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio, caso possamos confiar nas respectivas avaliações.»

António Damásio, A estranha ordem das coisas

Fotografia de Robert Doisneau


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