segunda-feira, 31 de julho de 2017

Procissão do Corpo de Deus

«Em Lisboa ninguém dormiu. Acabaram os outeiros, as damas voltaram dentro a compor a pintura esmaecida ou esborratada, daqui a pouco regressarão à janela, outra vez gloriosas de carmim e alvaiade. O povo miúdo de brancos, pretos e mulatos de todas as cores, estes, aqueles e os outros, estende-se ao longo das ruas ainda turvas do primeiro amanhecer, só o Terreiro do Paço, aberto para o rio e para o céu, é azul nas sombras, e depois subitamente rubro do lado do paço e da igreja patriarcal, quando o sol rompe sobre as terras de além e desfaz a bruma com um sopro luminoso. É então que começa a sair a procissão.



Vêm à frente as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, primeiro que todas as dos carpinteiros, representando S. José, que desse ofício foi oficial, (...) Atrás vem a imagem de S. Jorge, com todo o seu estado, os tambores a pé, os trombeteiros a cavalo, rufando uns, outros soprando, rataplã, rataplã, tataratará, tá, tatá, não assiste Baltasar no Terreiro do Paço, mas ouve as trombetas ao longe e arrepia-se como se estivesse no campo de batalha, (...)




Passaram as bandeiras, afasta-se o alarido das trombetas e dos tambores, agora vem o alferes de S. Jorge, o rei-de-armas, o homem-de-ferro, de ferro vestido e calçado, com plumas no elmo e viseira derrubada, ajudante-de-santo nas batalhas, para lhe segurar a bandeira e a lança, para ir à frente a ver se saiu o dragão ou dorme, escusada prudência hoje, que não saiu e estará dormindo, suspiroso sim de nunca mais poder vir à procissão do Corpo de Deus, não são coisas que se façam a dragões, nem a serpentes, nem a gigantes, triste mundo este, que assim vai consentindo que lhe roubem as belezas, enfim, algumas se terão preservado, ou são de beleza tanta que não se atrevem os reformadores das procissões a deixar, para só falar destes, os cavalos nas cavalariças, ou a abandoná-los (...)


e eis que aí vêm quarenta e seis, pretos e cinzentos, de formosos xairéis, condene-me Deus se não declarar que melhor vestem as bestas do que os homens que as vêem passar, e isto é sendo o Corpo de Deus, trouxe cada um no seu próprio corpo o que de melhor tinha em casa, a roupinha de ver ao Senhor (...)»
José Saramago, Memorial do Convento



As fotografias são da exposição Corpus Christi. A procissão do Corpo de Deus, na Sala do Capítulo do Convento da Graça, até dia 1 de Outubro.

«A mostra reconstitui a exposição original apresentando as 1587 miniaturas, em barro não cozido, que retratam a procissão do Corpo de Deus como seria no século XVIII, concebidas e moldadas à mão, entre 1944 e 1948, pelo empresário Diamantino Tojal.»

Este conjunto de peças, que faz parte do acervo do Museu de Lisboa, apenas tinha sido apresentado na sua totalidade em 1948, no Palácio Galveias.


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