quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia no Panteão - Nestes últimos tempos

Sophia de Mello Breyner Andresen já estava no Panteão, antes ainda de ir para o Panteão (Nacional).
Sophia faz parte do conjunto de homens e mulheres notáveis - encontra-se no Templo que lhes é consagrado.
O exemplo da sua vida e o valor da sua obra poética são absolutos (e poética é toda a sua obra, mesmo a prosa e os textos infanto-juvenis).
As cerimónias de hoje têm um valor relativo. Não são a verdade.

Poderá parecer sectarismo (e sê-lo-á, talvez*), mas ouvir Cavaco Silva discursar sobre a poeta é artificial, ver Passos Coelho (e não só) na assistência é deprimente - disgusting. A sua relação com o exemplo e com os valores de Sophia de Mello Breyner é... zero. Estas personagens... não grudam. Estava lá gente para ser vista, a cumprir a obrigação de estar presente.
A unanimidade em torno de Sophia é supérflua.
Sophia considerava que os artistas, os poetas conseguem "apreender na natureza, nos elementos, o elo primordial que une o Homem ao Universo". Quem nos governa só consegue apreender o elo que nos liga ao capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen não foi só a poeta - que detestava a palavra poetisa - foi uma defensora, durante o Estado Novo, da liberdade em Portugal. Assumiu abertamente a sua posição, candidatou-se pela CEUD às eleições legislativas de 1969, participou em vigílias contra a guerra colonial, associando-se aos grupos católicos progressistas que se destacavam na época.
O acto de maior simbolismo, hoje, foi a missa celebrada na Capela do Rato, lugar central da acção desses grupos.

Num discurso proferido na campanha de 1969, afirmou "Aos pobres de Portugal é costume dizer 'Tenham paciência'. Mas na verdade devemos dizer: 'Não tenham paciência'. Devemos pedir ao povo português que procure o caminho de uma 'impaciência pacífica', que se exprima e combata sem violência mas com teimosia e firmeza."

Quebrando a unanimidade, lembremos o poema Nestes últimos tempos, de Julho de 1976.

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo - de seu
Viscoso gozo da nata da vida - que diremos
Da sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos das máscaras álibis e pretextos
Das suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?
O Nome das Coisas

Chamou as coisas pelo seu nome.

Vídeo de depoimentos à Societé Suisse de Radiodiffusion et Télévision e Office National de Radiodiffusion Télévision Française (Outubro de 1968, ainda não passara um mês do governo de Marcelo Caetano):




Poema de Sophia de Mello Breyner (1958) cantado por Francisco Fanhais



Proponho que no Panteão Nacional, (também porque está bem acompanhada por mestre Aquilino), se instale uma biblioteca dos grandes escritores portugueses. Passaria a ser um bom espaço de leitura.
E já agora... que nos permitissem que fôssemos ler para o terraço, com aquela vista monumental do Tejo, aquele Tejo que corre em poemas de Sophia.




* Também é sectarismo Cavaco Silva ignorar José Saramago.
Tenho curiosidade em saber o que sentiu Miguel Sousa Tavares, quando ouviu Cavaco Silva elogiar a sua mãe.



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