domingo, 5 de janeiro de 2014

Eu vi-o jogar

Era eu miúdo, morava em S. Domingos de Benfica.
Podia bem ir a pé para o Estádio da Luz. O meu pai fazia muitas vezes serviço aos jogos e levava-me para ver o Benfica.
Depois tornei-me sócio, até 1976, altura em que passaria a sócio sénior e teria de pagar um valor que achei ser mais bem empregue noutras coisas. Prioridades da vida.
Mas no final dos anos 60 e no início da década de 70, era difícil perder um jogo do Benfica na Luz. E o Benfica raramente perdia um jogo.
Tinha o Eusébio.

Eusébio era o rei.
Em 4x2x4, lembro-me que do meio-campo para a frente era Jaime Graça e Coluna, José Augusto à direita, Simões à esquerda, Torres e Eusébio no meio.
Eusébio era o 10.

O 10 era o mais difícil dos "bonecos da bola", no tempo em que os jogadores de futebol embrulhavam um rebuçado de açúcar caramelizado, custando um tostão cada um, comprados perto da escola primária (a "escola das escadinhas", ao Bairro Novo). Mas também os cheguei a comprar em Serpa, nas férias, quando ia com a minha tia Teresa à mercearia do sr. Figueiras e ela me dava o troco das compras.
Dos rebuçados (de fraca qualidade) não queria saber - chegavam a ir para o lixo ou a derreterem-se no fundo dos bolsos, esquecidos numa massa peganhenta...

Houve tempos em que esses "bonecos da bola" iam forrar o interior das caricas, recortados no seu fundo, formando equipas que disputavam renhidos campeonatos, em que eu fazia os relatos, chegando ao pormenor de imitar o bruá do público nos momentos mais empolgantes dos desafios.
Ter o Eusébio nas caricas não era fácil - tomáramos nós tê-lo colado na caderneta.
Imagino o que seria se, na época, já existissem as play station...
Mas o Eusébio não chegou às PS.

As caricas "já foram", os "bonecos da bola" já são cromos autocolantes com fotografias de alta definição, não é preciso fazer cola caseira com farinha e vinagre com que os colávamos nas velhas cadernetas.
Imitar o Eusébio nos jogos de futebol de rua, nunca tentei. Não tinha talento de atacante... Regra geral, jogava a guarda-redes e safava-me (melhor se as bolas iam para a minha esquerda; não era tão hábil se as bolas iam para a direita. Por isso, gastava o joelho esquerdo das calças, ou arranhava o dito - se jogava de calções - e os sapatos na zona do dedo mindinho do pé esquerdo).

Do Eusébio restam-me, então, duas ou três cadernetas com o seu "boneco" e as memórias dos jogos que ele resolvia, as suas fintas desconcertantes, as suas explosões em direcção à baliza e os seus remates poderosos, num tempo em que o marcador do estádio, manual, chegava facilmente aos 5, 6 ou 7 a zero.

A mim, que não perdia um jogo do Benfica, mas que há mais de 30 anos não ponho os pés num estádio, só um Eusébio me faria voltar.
E não há mais nenhum Eusébio.


Havia nele a máxima tensão
como um clássico ordenava a própria força,
sabia a contenção e era explosão,
havia nele o touro e havia a corça.

Não era só instinto, era ciência
Magia e teoria já só prática.
Havia nele a arte e a inteligência
Do puro jogo e sua matemática.

Buscava o golo mais que golo: só palavra
Abstracção. Ponto no espaço. Teorema.
Despido do supérfluo rematava
e então não era golo: era poema
Manuel Alegre


P.S. - Poema corrigido. A 1.ª versão estava truncada.


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