terça-feira, 8 de março de 2011

Carnaval

Chegado o Carnaval, no ar húmido e esvassoirado de vento, com alternativas estonteantes de sol e chuva, paira um cheiro enjoativo de bisnagas. A cidade inteira parece alucinada, azoada de barulhos raros. Voam núvens de papelinhos, cabeleiras multicores de serpentinas pendem das sacadas, dos fios telegráficos, esvoaçam, transpõem as ruas.
A Águeda confeccionou amorosamente dúzias de saquinhos, com retalhos de seda e veludo, enche-os de feijão, na esperança de ir a qualquer parte brincar. O Gabriel comprou uma máscara cor-de-rosa, de riso estúpido, e corre a meter medo aos amigos. Mas depressa foge dos chechés: «Dá cá uma pançadinha ao velho!» - «Bebés» de fralda suja, calça comprida e botas de carroceiro à mostra, sinistros, cambaleiam. Há dominós e alcoviteiras. Meninos mascarados de polícia, marquês de Pombal, toureiros, almirantes, campinos, generais, passam com muito juízo, na companhia das famílias, a caminho da Baixa, da Avenida, dos concursos de máscaras e bailes infantis, o retrato sai depois nos jornais. Ele fica a olhá-los com mágoa: nunca se mascarou... As cegarregas atroam os ares, passa a Dança da Luta, cegadas, danças de pretos, «frum-fum-fum, que vou pr'Angola!» Filarmónicas amolgadas regougam de vinho tinto, desafinadas, pedem esmola na encruzilhada. Passam bandos de máscaras em turbilhão, frenéticos pesadelos arrastados no vento. As janelas e sacadas enchem-se de gente. Há quem arremesse cocotes de farinhas a quem passa: estoiram nas fachadas, na calçada, acertam por acaso, há insultos e berros. De outras janelas pendem «vasculhos» como aranhas ameaçadoras. (A casa deles é recuada, não se pode brincar assim.) Ali em baixo, um homem curvou-se disfarçadamente a apanhar do passeio uma moeda de prata: era falsa e estava pregada ao chão com um prego! A gargalhada encheu a rua, ele apanhou com o vasculho, fugiu corrido e enfarinhado... Porque é que tudo isto nos entristece?
Ao Chiado não se pode romper, o grão-de-bico chove das janelas, não fica um chapéu de coco inteiro. A Rua Augusta e a do Ouro estão acolchoadas de confetti. É proibido apanhá-los do chão, mas não sei se percebem...
(...) Ele e a irmã arremessam coisas que nunca acertam, ninguém repara neles, perdidos no tumulto. Mas sempre voltam para casa com algumas coisas novas, e a Águeda conserva os saquinhos para o ano seguinte.
O Carnaval deixa-lhes um frio húmido no coração, um enjoo de patchouli, uma memória de farrapos expostos, de vinho vomitado, um desgarramento de cansaço. Serão assim todas as alegrias? «Os hospitais cheios de gente!» - diz a dona Adélia. Logo depois quarta-feira de Cinzas... Só restam as serpentinas, a descorar ao sol, ou a pingar chuva.

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso

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